Sunday 18 August 2013

Morte-Vida-Morte: um Possível Encadeamento

(Para uma reestruturação da ideia de morte) 







«MORTE: Estás pronto?
CAVALEIRO: O meu corpo está, eu não.» 

in «O Sétimo Selo», Ingmar Bergman



Mesmo antes de ser ideia, a morte é já pressentimento naquele que acaba de nascer; momento cujo primeiro choro me parece significativo, no sentido em que se afigura como prova da intuição da sua fragilidade, como se o recém-nascido adquirisse, nesse momento, a prenoção de que tem (sem o querer vestir de negro destino) o tempo contado. O que digo é que, de alguma forma, há desde logo no nascimento a intuição desse par de opostos (entrelaçados) que é a vida e a morte ― o reconhecimento de uma vontade de viver cujo corpo, já fora do conforto do ventre materno, infere também a sua vulnerabilidade e, como que por associação, a sua perecibilidade. As tendências idiossincráticas e fisiológicas próprias do indivíduo, assim como as estruturas afectiva e social que pelo caminho o vão moldar, reúnem os ingredientes necessários para que dificilmente o indivíduo cresça detentor de uma capacidade de desconstrução e emancipação intelectualmente exemplar face ao Estabelecido. A modernidade é disso o exemplo máximo, cuja realidade, sempre abortada por via da aparência que dimana de todos os sectores da vida institucional, surge ao indivíduo adulto com a indestrinçável confusão do sincretismo infantil.

A noção e o valor da vida, porque intrinsecamente ligados a uma estrutura egóica, desenvolveram-se segundo as limitações seculares da religião e da cultura. Ainda que os respectivos efeitos possam, hoje em dia, à sombra do laicismo e da globalização, revelar-se de uma subtileza tal que parecerá absurdo à maioria achá-los já redutores e lesivos, em verdade continuam a limitar-nos a olhos vistos, pelo simples facto de, para trás de si, terem deixado um longo rasto. Para o bom entendedor, um olhar retrospectivo basta. A decadência e confinamento materiais a que o alienante poder do mercantilismo tem vindo a subjugar o espírito humano, assim como, por oposição, o recurso a uma reorientação espiritual que as mais recentes gerações perseguem cada vez mais, comprovam-no. Posto isto, a noção e o valor da morte encontram-se igualmente viciados.

Na tentativa de uma reestruturação da ideia de morte, arremessarei as minhas objecções, que tentarão seguir no sentido de inserir esta ideia num plano cósmico, partindo inevitavelmente de uma visão humana mas tentando desenleá-la do emaranhado do respectivo ego, ou seja, desconstruindo a ideia de que vida e morte se opõem e, ao invés, encadeá-las segundo uma perspectiva holística e orgânica do Universo.


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Tal como antes de sermos não éramos, tornamos ao não-ser. A morte física e, segundo a lógica, intelectual do ser, representa o fim da pessoa enquanto identidade. É a perda dessa identidade que nos parece incrível, intolerável, inverosímil. Parece-nos impossível aqui termos vindo e erigido toda uma vida só para desaparecermos para sempre. A questão prende-se, portanto, com o aspecto egológico. «Eu que tenho um nome, eu que sou o que sou e que estou tão certo disso como existir, vou desaparecer um dia?!» É esta a quase indignação que certamente já nos assaltou a todos e que de alguma maneira perdura como um incómodo, mesmo se, num estágio já adiantado da vida, a relação com essa realidade futura esteja já aceite e até assimilada segundo uma concepção cíclica do Cosmos, isto é, num plano físico, em que as existências não resultarão num fim finalista mas transmigratório, sendo que a substância que somos, ou seja, a matéria e a energia de que somos feitos prosseguem na sua elementaridade, noutros moldes já que não o da identidade humana.

Parece-me natural que a consciência da morte enquanto fim da identidade tenha potenciado todas as complexas mitologias conhecidas. Partamos então do pressuposto de como a morte, isto é, de como a nossa finitude pode operar como força motriz do ser vivo e, em particular, do criador. Foi o pressentimento do nada que, à custa de o pressentirmos a fundo, na ingenuidade natural de um ser intelectualmente incipiente, nos fez criar deuses e Aléns: criámo-los para nos esquivarmos à possibilidade incrível de não haver continuidade para a nossa vida depois da nossa morte, ou seja, pela simples razão de nos custar que a nossa vida, a que nos habituámos com a mesma força que as raízes de uma árvore à terra, acabe. Com isto, introduz-se a ideia não só de crença mas de criação, que é o que mais interessa à moral deste texto. Todo o exercício de criação exprime, para além de uma vontade de viver, uma vontade de sobreviver à morte. E não é aliás a procriação o seu reflexo mais imediato? Se o aceitarmos, aceitamos a criação como seu expoente máximo. 

O ser humano, esse eterno condenado a uma consciência reactiva, é capaz de tudo para se salvar de deixar de existir. É a consciência da morte que despoleta, proponho eu, essa reacção, esse mecanismo de defesa que projecta o ser humano na vida e que lhe serve de base sobre a qual ele se inventa e reinventa a própria Vida. A consciência da morte é o lugar onde o próprio valor da vida se estreia. Ou seja: a consciência da morte funciona, a priori, como princípio motivador. Sem a consciência da morte não haveria, por si só, valor possível a atribuir à vida. Da mesma maneira que o dia nunca poderia ser claro sem a consciência da noite, nem a noite escura sem a consciência do dia. A noção de valor expande-se com a comparação de opostos. A morte é-nos tão intrínseca como estarmos vivos e determos uma identidade intelectual e fisionómica. É parte de nós. Se somos um começo, também somos um fim. Não há outra forma de existir senão a dicotomia de elementos aparentemente opostos mas que afinal acabam-se revelando indissociáveis. Precisam um do outro para existirem, para serem o que são, segundo uma concepção humana das coisas. Existem portanto distintos mas entrelaçados.

Mergulhemos um pouco mais fundo no problema cultural da morte. Se nos conseguíssemos afastar da concepção egóica que temos de nós mesmos e da vida, não depararíamos nós com a realidade de que tudo nasce de uma espécie de morte, idêntica àquela que, mais tarde ou mais cedo, tudo aquilo que encerra uma identidade, vivo ou mesmo inanimado, virá a conhecer através da acção do tempo? Tal como é um facto que vamos morrer, não o é também que nascemos de uma espécie de morte, se considerarmos a morte uma espécie de nada, de inexistência? Pois para o «antes de termos nascido» também existe em nós a ideia de nada, isto é, de que não existíamos. Nessa altura havia, no máximo, uma ideia abstracta de nós na mente dos nossos progenitores, mas não existíamos no sentido físico, consistente, substancial da palavra, tal como depois de morrermos, segundo esta visão, deixaremos de existir, de ser, no sentido físico, consistente e substancial da palavra. Um e outro nadas não serão então feitos da mesma insubstância? É, pelo menos, uma ideia que me tem acompanhado no tempo, à qual sempre fui buscar suporte que fundamentasse o meu pressentimento do que será a morte, ou seja, o fim da identidade consciente de si. Mas deixo desde já a ressalva, para os mais susceptíveis, de que apenas promovo esta tese como exposição hipotética, plausível, meramente à margem de uma análise pessoal. Sinto-me então inclinado para a proposição de que o fundamento da vida é a própria morte e que esta é o destino final de todo o ser vivo enquanto identidade, essa coisa, no fundo, tão abstracta. A vida nasce da morte e à morte torna.

Muito à imagem do que Sade nos explana na sua obra A Filosofia na Alcova, com a desconstrução que faz da ideia platónica de transmigração das almas, que o autor da República sobremodo poetiza, há na vida natural esta fúria de viver, explicada pelo próprio princípio de acção sinérgica entre perecimento e nascimento. Todo o corpo sofre o constante «chamamento» da matéria-mãe, a Terra, esse organismo que, de tão gigântico, nos escapa enquanto tal. Há nisso uma mecânica natural, orgânica. Se olharmos este nosso planeta como um organismo vivo, de que os animais e os vegetais são constituintes, e dos quais ele se serve para se manter ora matando-os ora dando-lhes vida, poderemos compreendê-lo. Os seres vivos encerram em si o mesmo processo, ao procederem à nutrição para se manterem. Assim, os animais e os vegetais perecem para nutrirem a Terra, que volta sempre a dar os seus frutos outros animais, outros vegetais , segundo o continuado ciclo em que a caracteriza. Posto isto, se há vida após a morte, o mais provável é que, segundo Sade, tal fenómeno ocorra na própria Vida. Partilho desta visão. Se há transmigração anímica, é mais plausível que se dê através da matéria (cuja alma é meramente a energia), por via da terra onde tudo se mistura e donde tudo brota. Disto podemos nós estar certos. Agora, depois da minha morte, que poderei eu dizer de mim tal como me sei? Que poderei eu mais do que a Vida (já por si tão inefável) em que existo agora? Vejo, entre corpo e espírito, um contrabalanço mútuo, sinérgico, qual matéria e energia, que, afinal, os torna um só. Sem essa dualidade una, sem essa união dual, não haveria aquilo que conhecemos como Existência. A Vida, o Mundo, o Universo é a coexistência dos dois. Tudo o que queira ir para além disso, segundo os moldes da crença, parecem-me projecções demasiado ansiosas e fantasiosas. 

O processo que se segue a qualquer nascimento resulta sempre e inevitavelmente no desaparecimento identitário desse mesmo objecto. E se a sua matéria de alguma forma persiste depois, é apenas sob a forma de partículas isoladas e reintegradas na terra do planeta que o sustentou: o que ele dá, a ele torna. Ideia assaz conhecida; primitiva, arquetípica. A morte, poder-se-ia dizer num tom mais poético, chega mesmo a ser um desejo tácito da matéria, do corpo, como se este gritasse surdamente por ela desejo de tornar ao que primordialmente foi. Uma metáfora do sono acompanha este raciocínio: todas as noites dormidas podem aparecer-nos, por associação, como um ensaio do fim último; o descanso de um dia esgotado como morte de uma vida esgotada, isto é, que se completou. 

Existe no cavaleiro de Bergman (que cito em epígrafe) essa expressão implícita de desejo de morte pelo corpo. É um mecanismo imanente a todo o organismo vivo; do qual todo o ser vivo tem, pelo menos, consciência sensível. O declínio natural dos corpos nos seres animais, a senescência é a prova mais próxima do que pretendo demonstrar, que não é mais, afinal, do que um atributo da vontade suprema e insuperável da Natureza, processo através do qual ela se expressa, vive e se mantém: a morte dá lugar ao vivo. Contudo, o Eu humano, esse elemento espiritual, ou espiritualizado, tido em conta de etéreo, quase extraterreno, quer, ao invés, perdurar, pois que é «consciência», além-carne, além-finitude. Outro aspecto que, oposto ao desejo de morte do corpo, se encontra outrossim implícito na epígrafe de Bergman. O cavaleiro, suspeitando já do garante divino da sua imortalidade, evita a morte. Então, já sem deus a que recorrer, desafia-a para um jogo de xadrez, de forma a dar mais tempo à sua passagem pela Terra. O cavaleiro não quer a morte, quer perdurar, dar continuidade àquela sensação que a primeira passagem do filme na companhia da família de saltimbancos nos revela, naquele dia áureo que, tal como a ele, nos surge claro e perfeito em si. Posto Deus em causa e seguidamente de lado, toda a vida individual passa a ser mais clara e a ter sentido em si. O medo de uma morte que ele duvida vir a ser amparada pela mão de Deus, incrementa nele o desejo de vida, isto é, de perdurar e desfrutar da vida na Vida, àquem de todas as conjunturas escatológicas que tanto depreciam e desaproveitam o que realmente importa: existir na Terra. Mas há muito que nos encontramos demasiado longe da Natureza para que a possamos perceber. Há muito mais até do que o tempo do cavaleiro de Bergman...

Aproximo-me finalmente do que queria. Nada do que até aqui foi dito em relação à morte é negativo. A impossibilidade de imortalidade, a inexistência de um deus que nos promova a identidade física e intelectual após a nossa morte, não é uma coisa má. Antes pelo contrário: este apercebimento vai trazer-nos de volta à Vida, de volta a nós, se nos consciencializarmos de que somos nós mesmos o lugar que verdadeiramente importa, ao contrário do que tanto o crente da mais baixa casta como o sumo pontífice fazem. Estes pouco ou nada, ainda que por razões diferentes, querem saber desta vida, da vida natural, essa mesma que existe num planeta cercado de astros frios e treva; antes a temem, a detestam e a acham suja e impura; querem-lhe mal. Ao primeiro, devido a toda uma conjuntura de interesses alienantes, nomeadamente político-religiosos, ficam-lhe reservados os paliativos da crença. Por desespero acredita, tal como lhe ensinaram, que existe lugar melhor para além desta Terra. Ao passo que o sumo pontífice prende-se, por via da sua posição, com a promoção terrena do seu estatuto de representante divino em detrimento dos restantes; ou seja, transpõe tudo, de um modo deturpado e deslocado do sentido do real, para a categoria do ideal, esse modo tão subtil e aparentemente plácido de odiar a Vida. Da mesma forma que à vida, o sumo pontífice, assim como o simples padre com a sua velha sotaina, amortalha-se com as vestes faustosas que, ao mesmo tempo, impõem o respeito espectacular da aparência, que tantas cervizes fez e faz dobrar. Esta tipologia religiosa, principalmente a institucional, alimenta uma profunda má-fé contra todos os constituintes naturais da vida humana, como os instintos. A pregação do sacerdote reside numa vontade ditatorial, isto é, de ditar aos outros o molde de uma realidade idealizada, que ele chefia. Uma pregação que, embora camuflada de bem, tem em si o expoente máximo de toda a castração, de toda a vontade de domínio sobre o outro, fazendo o desprezo vingar sobre a natureza e a liberdade individual. O homem projectado no Além, é a representação máxima desse próprio desprezo. Claro que a hermenêutica moderna defende-se também modernamente, segundo a actualização de que toda a questão bíblica é para ser vista como metáfora. Claramente! Era como devia ter sido vista sempre. Mas não foi. O que a história judaico-cristã deixa para trás, a forma como os seus influentes fautores agiram, principalmente no que respeita à formação do poderio da Igreja católica e dos actos abusivos que esta disseminou pela Europa em nome de um deus estrangeiro, não a iliba. Para além do mais, se olhada a fundo, facilmente veremos tratar-se de uma visão demasiado egocêntrica e projeccional. Nada disso nos interessa. Preferimos a coragem de quem aceita o imenso vazio sideral e, no lugar da debilidade da crença, se serve da confiança e exultação próprias da Arte que se presta à vida e ao humano, essa mesma vida que nos ensina, a sós e em conjunto, a construir-nos e a Ser, e que reconhece que o fogo distante das estrelas, só porque distante, nada tem de frio. Esse Ser sabe que a imaginação nos aproxima uns dos outros e das coisas, do real humano, do fogo circundante. 

Esta tese, então, cujo assunto tanto assombra o espírito humano como parece evidenciar-se no seu corpo qual chamamento natural (que afinal não é mais do que a força universal que, segundo uma dinâmica elementar, tudo rege), está longe de se aproximar da ideia de que esta vida é mero calvário. Não consigo conceber a vida identitária e consciente para além da morte senão por meio de uma imaginação mitológica, que o crente ou simples mortal não consegue discernir e compreender enquanto mera representação e expressão do pathos humano ― a sua condição existencial, nesta acepção ―, que é o mesmo que dizer que tais projecções têm por base uma subjectividade demasiado egológica e medrosa, demasiado arreigada ao medo da perda, construída à custa de nos custar que um dia iremos desaparecer e, até, que um dia aqui aparecemos. Tudo partiu daqui e é natural que assim tenha sido. Mas natural não acho já que aqui ainda se demore. Aceleremos o passo! A consciência que separa pode também reunir. Convém não esquecer a facilidade com que nos deixamos corromper quando, tão frágeis, abandonamos o ventre materno e nascemos para toda uma realidade colossal de ideias, ideais e ideologias já concebidas e instaladas, que inclusivamente contaminaram os nossos educadores mais imediatos, e os deles, com os seus secularmente pesados e arreigados alicerces e legados de cariz melindroso, bilioso, covarde, egocêntrico. Está-nos inscrita no espírito toda essa herança indelével, como um vinco numa folha de papel, que agora, com grande dificuldade e demora, os mais sábios têm de aprender a contornar.

Se a vida, tal como proponho, tem os seus alicerces ou o seu princípio na morte, ao ponto de a carne parecer seguir no encalço de um chamamento contínuo até à devida consumação, não é por esta ser uma vida que só serve de passagem sacrificial, qual via dolorosa, de molde a atingir o «verdadeiro estágio» ― esse pós-vida qualquer que só a custo de uma grande fraqueza por um lado e presunção por outro se fez por enraizar até às profundas da psique humana. A crença é um erro porque não sabe mas julga saber, imaginando e acreditando no que imagina. É uma sub-espécie da covardia. Só a imaginação assumida, isto é, artística e racional, não pode pecar aqui, porque em boa verdade, se visto assim, o contínuo memento do imperativo da morte que tentamos retardar, traz consigo um desejo supremo de vida, o qual apenas precisa de ser reorientado. A criação artística, parece-me, tem aqui o seu nascimento e ganha aqui a sua força. É a resposta mais salubre ao aspecto da morte: a alternativa à imortalidade que, na modernidade, Deus já não nos pode garantir. Se tal como o cavaleiro de Bergman queremos perdurar, façamo-lo com o brio e a coragem que nos compete. Aquilo a que chamamos de energia vital, espírito ou actividade psíquica, é quem grita pela vida, para lá do corpo que procede indiferente em direcção ao seu destino. Essa energia é potencial criação, que o artista concretiza. É vontade de realização: uma ordem da natureza. Concretizar esse grito, através da nossa arte, é mais do que dar-nos o que fazer ― é recriar-nos, é cumprir-nos no que somos. O simples espectador/leitor tira partido disso, identifica-se. A imaginação é esse grito enérgico do espírito que quer viver, tanto quanto possível, face a uma vida finita; um espírito que se quer ver completo no final. A arte deve ser assumpção total e o veículo maior desse desejo; deve servir, em vez de mero depósito de maleitas pessoais, para uma re-ligação com a Natureza, para uma compreensão unitiva dessa Mãe elementar e primordial. Mas deve, inclusive e sobretudo, tornar-se mais relevante do que o próprio desejo de imortalidade. Há que assumi-la como o atributo humano por excelência, aqui, na Terra. Uma arte projectiva, necessariamente, sim; mas ciente; cientemente terrestre; isto é, que parta de nós para fora; que não venha enganadamente de cima, qual divina influência que nos rouba a importância. Que tenha portanto os pés assentes na terra. Que saiba o que quer. Que irradie confiança.

O nada precede, portanto, todo o nascimento. É a primeira parturiente; a grande vagina, de onde tudo despoleta e se origina e se lança depois para o seu sentido: ser. A Existência comporta em si duas vontades-base, a vontade de viver e a de morrer, tidas culturalmente por dicotómicas, mas que de uma perspectiva universal, olhando pelo olho do Cosmos, nos pode apenas surgir à consciência (esse olho do Cosmos) como unidas por relação. A própria vontade de suicídio, consumada ou não, acaso manifestará mais do que uma vontade de viver que foi de alguma forma constrangida?... A vontade de viver, residente nesse espírito criador, conquistador de si, aventureiro, cuja imaginação, por si só, contagia já o corpo com saúde e força, por reacção instintiva à consciência desse futuro de que um dia tudo terá um fim (pelo menos tal como o conhecemos), adquire, nestes moldes, sentido próprio: a vida torna-se ela mesma, aquém já das sombras que a relegam para um Além qualquer, inalcançável, febril.

Esta visão tentativamente afirmativa de que a morte promove a vida, pode socorrer-se da seguinte metáfora: Alguma vez alguma árvore de fruto (pelo menos saudável), desde o tempo em que era rebento até ao tempo em que tomba e se deteriora e torna à terra, se perdeu do seu sentido natural, isto é, da função de dar frutos? Terá alguma vez deixado de crescer e de dar frutos só porque um dia viria a morrer? Sinto-me antes tentado a asseverar que cresceu e deu frutos precisamente porque um dia viria a morrer. E se criou, se deu frutos, aproveitou o seu tempo e cumpriu o sentido da sua vida. Só a árvore doente o não poderá.

Mas, claro, mesmo o ateu moderno padece, de alguma forma, de uma concepção imprópria da vida. O indivíduo moderno vive ainda na ressaca da desilusão das velhas promessas salvíficas, que o puseram defronte da responsabilidade própria de que teria de ser ele a salvar-se, recriando-se, reelaborando uma concepção do Universo, tendo como única fonte o passado longínquo, pré-cristão. O cenário social circundante não ajuda. A classe política, estatal e mercantil, essa inoculadora da alienação, despolitiza as consciências, o que resulta exactamente naquilo que a religião, ao nulificar o existente, inflige aos crentes. São obstáculos difíceis de ultrapassar e o intelecto humano, para mais, é preguiçoso. Mais ainda quando os velhos padrões, tanto políticos como religiosos, fazem por persistir, promovendo o niilismo. Nos dias que correm, isto é, do ponto de vista de uma crítica da alienação social, é caso para dizer: quanto mais me afasto da realidade, mais real me torno.

O sentido primordial da vida, o da elementaridade cósmica, segundo uma cosmovisão pagã, isto é, natural, pode ter-se perdido no tempo, mas verifica-se agora um crescendo cada vez mais significativo da busca por uma espiritualidade que quer trazer-nos de volta a nós e de volta à casa cósmica que, embora desapercebidos, habitamos e de que fazemos parte. A velha preocupação de uma continuidade pós-morte e de uma Entidade que a presida, está cada vez mais a passar para segundo plano, até que de todo nos desliguemos disso enquanto preocupação, logo que, por via das gerações vindouras, o espírito humano vá sendo depurado dos resíduos dessa matéria falaciosa que nele se foi depositando. A vontade de viver, nesta e não noutra vida, deseja impor-se, e com notório incremento. Um novo paradigma de vida espiritual tem já vindo a formar-se um pouco por todo o Mundo, se bem que de uma forma ainda muito incipiente. Mas é aquele que, mais amigo da liberdade, isento já de dívidas para com o divino, vai buscar a sua substância à natureza etérea das artes e à Natureza em si, a do planeta e do Cosmos, com o qual se identifica. O conceito futuro de religião caminha para a redefinição da relação que o indivíduo tem com o Mundo e com a sua extensão, o Universo. Talvez a Vida real volte a ganhar, embora claramente noutros moldes, o enfoque que durante séculos, com a instituição do cristianismo (e agora do capitalismo), perdeu. Nós, que vivemos hoje, podemos pelo menos fazer parte dessa mudança com o que cada um tem de melhor e, essencialmente, de mais drástico.

Em suma: que a morte é parte da vida e vice-versa, que interdependem, que um ao outro se seguem com a devida ordem e entreajuda, é a tese defendida neste texto. Os povos pagãos conheciam bem esta visão, até ter-se dado a clivagem ideológica e civilizacional que veio trazer ao pensamento moderno a ruptura que resultou na profunda separação entre o Homem e a Natureza: a diabolização desta por parte da doutrina cristã e a expansão das urbes por meio da Indústria. Mas talvez a própria História, tal como a Natureza, seja de facto um processo constante de retorno e tudo de facto assim se processe, ciclicamente, com toda a força da renovação, que incansavelmente vai substituindo os elementos já gastos e supérfluos da sempiterna Existência.


Berlim,
Janeiro de 2013

Do Sentido de Aventura: o Novo Sátiro








Antes quero ser um sátiro do que um santo.

(F. Nietzsche, Ecce Homo)



A epígrafe com que ilustro este texto pretende enunciar algo profundo mas, infelizmente, apenas latente, recalcado nos confins do Ser; o elemento mais forte e, todavia, mais relegado dele, nos dias que correm. Falo do sentido de aventura enquanto fuga ao labirinto social e respectivo espectáculo acabrunhante, depauperante, e enquanto desejo de libertação. O sátiro gosta de dançar e de vaguear livremente. Sabe que a vida não tem só um prisma, que é antes multifária. E como não deseja mal ao seu semelhante nem ao seu dissemelhante, não lhes vende balelas nem lhes expõe a sua segregação corrosiva. Trabalha antes para elevar os espíritos, mostrando-lhes a possibilidade e a coragem de Ser. Prefere, ao rebanho, exércitos de guerreiros e belatrizes, indivíduos que lutam por si mesmos, que lutam por superar-se, combatendo a sua condição e auferindo assim um pouco mais de desenvoltura e liberdade de espírito neste mundo de enleios. Eis que, cada vez mais, um novo sátiro deseja surgir do olvido para nos vir resgatar ao sedentarismo físico e espiritual que nos domina, que nos amesquinha, que nos tolda, que nos separa da vida e da vontade. Uma vez desperto, convidar-nos-á para dançar: prelúdio de um renascer.


Aventura é movimento. Misto de expectativa, receio, entusiasmo. Pode dar-se tanto no terreno como simplesmente em espaço anímico. E são vários os meios de encetar uma aventura. Esta abordagem seguirá uma direcção polissémica, que me proponho explorar minimamente. É uma palavra e um conceito que me são caros. Como todos os seres em cujo peito bule vida, e cuja mente o sabe porque lho dizem as veias, o meu sentido de aventura é, como sempre foi, uma constante (mesmo que na prática não se reflicta tanto como gostaria; mas ainda há vida pela frente...). Prefiro sempre o lugar que ainda não conheço, não porque o lugar onde estou seja mau mas porque, segundo a minha natureza, tende a esgotar-se. A pessoa, enquanto lugar, também entra aqui. É então necessário recorrer à aventura para que nos salve de nos esgotarmos com o lugar. É habitual, por exemplo, termos uma casa onde permanecemos grande parte do ano como que estacionados. É habitual praticarmos o mesmo caminho ano após ano, que já nada traz de novo. É habitual vermos as mesmas caras, vítimas igualmente de uma displicente rotina. É desta noção de rotina, cujo primogénito é o Tédio, que advém o sentido de aventura. O tédio não é mais do que a manifestação de uma vontade enclausurada que se quer libertar. Todos desejamos ser mais do que rabos sentados.

O mais imediato recurso aventureiro - de fuga, portanto, ao esgotamento, à inanidade que nos rodeia - será, talvez, a literatura e o cinema. Proporcionam - tal como também a música, o teatro, a fotografia ou qualquer outra arte - um tipo de aventura que nos é dada a experimentar pelos sentidos. É uma aventura interior, que se processa dentro de nós, emocional e intelectualmente, e por isso estática. Ainda assim, uma aventura. Parece-me certo que tanto as artes como o entretenimento (este mais ainda) sejam os recursos mais à mão da maioria da população mundial, dado que a experiência de uma aventura física, no sentido em que temos de nos deslocar, sendo esse deslocamento a aventura, está, provavelmente pelas mesmas razões que a mim, impossibilitada à maioria. Pelo menos da forma desejada. Os anos vão passando e nós, no fundo, vamos apenas coleccionando pequenas aventuras anímicas e, para a classe média a que pertenço, uma viagem por ano, a qual, ainda assim, não deixa de ser turismo. O simples facto de o lazer se encontrar reduzido a «sector», o que é determinado por um outro - o do trabalho -, é esclarecedor. O turismo é o algoz da aventura, o pastor do rebanho de veraneantes. Aquilo a que se chama de «férias marcadas», isto é, «seguras», substituiu de vez o lugar da aventura espontânea, periclitante, e transformou o ser humano num servo da chamada «boa vida». As férias vêm assim justificar a institucionalização da escravidão do trabalho e a redução do Ser à camada hierárquica em que o enfiaram e onde o manipulam.

Pegando num dos exemplos de aventura anímica: a literatura. Esta, quanto a mim, comporta em si uma capacidade de transporte singular, não descurando as restantes artes. A duração da leitura de um livro consiste na assimilação de uma realidade construída à base de ideias encadeadas que dentro da nossa cabeça, no decorrer da leitura, adquirem sentido íntimo, porque detentores de signos metafóricos para os quais encontramos correspondentes na nossa realidade e com os quais nos identificamos. Se a adjectivo de singular, é enquanto leitor que o afirmo mas também enquanto escritor. Desde que escrevo, desde que desenvolvo histórias literárias, desde que sigo nesta aventura que é criar através da escrita, que consigo dar vazão de uma forma melhor, para mim, ao sentimento de tédio. Este é o meu caso. O mesmo acontecerá com outros, noutras áreas. O fulcro da vida hodierna consiste inevitavelmente - para o espírito inconstante, inadaptado, desejoso de liberdade e transformação espiritual e criativa - na fuga, na revolta e subsequente atenuação do taedium vitae. O tédio é, provavelmente, uma tendência congénita, mas que um sistema económico mal estruturado e doloso sobremaneira agrava, podendo facilmente fomentá-lo até ao desespero se, por iniciativa, esse mesmo sistema nulificador não for combatido pelo potencial criativo do indivíduo, só ou em conjunto, de forma a poder enriquecer-se conforme o seu gosto íntimo e sentido vital. Ao ignorarmos este recurso incorremos no risco de a Vida perder pelo caminho a sua substância, o seu sentido. Esta é uma questão cada vez mais pertinente porque a realidade política está organizada de uma forma que contribui exclusivamente para o despoletar e incremento desse tédio, produzindo com isso derrotistas, retardatários, desistentes, decadentistas, más índoles e autómatos inveterados. É muito fácil fazer de um cão aquilo que queremos dele, como nos mostrou Pavlov. Um cão é um animal e como ele, corruptível, somos todos. É preciso criar defesas: lendo, observando, reflectindo, amando, criando - resistindo.

A mais pequena unidade representativa do tema da aventura é o próprio pensamento, tornado, claro está, imaginação ou filosofia. São estas duas categorias, aliás, a engrenagem de toda a aventura. O pensamento, a que uma conjuntura emotiva dá origem, é, enquanto fautor da ideia, o primeiro passo da aventura. A imaginação, que é pensamento elaborado de ideias, é o seu seguimento. E aonde leva a imaginação enquanto aventura? A mil e um lugares. Mas tomemos o seguinte exemplo: Corto Maltese, que considero o protótipo do verdadeiro aventureiro. Um solipso anarco-romântico, para o qual as leis dos homens não foram feitas. Antes prefere procurar tesouros; tesouros que a ressequida sociedade materialista não possui. Corto vagueia pelo mundo por opção, por aventura, e, pelo caminho, decerto que nunca deparou com o tédio, e se deparou, não se há-de ter demorado senão enquanto o caminho parou. Na sua totalidade, o tédio só pode existir na rotina viciosa dos sedentários, esses segregadores de cinismo e inveja. «Mas o aventureiro», poderiam estes contra-argumentar, «ainda que não sinta tédio, sente o abandono constante do que deixa para trás. Só por isso busca mais aventura...» Então e o sedentário, aquele a quem edificar-se desinteressa, aquele que, para além do que a sociedade faz dele, nada alcança, não deixa a vida em local pior, isto é, no sítio de sempre, como que anestesiada, indolente e oca? Tão-pouco se aborrece já, de tão acomodado que está ao aborrecimento!

Todavia, a aventura enquanto libertação, espiritual pelo menos, não é possível sem a prerrogativa da filosofia. Só que esta é, principalmente hoje, um bicho de sete cabeças. O indivíduo, concluo, receia-se a si próprio. Mas a filosofia não é senão abnegação. Sequer a vejo como disciplina, a priori. A filosofia é, na sua essência, o princípio de libertação e é a própria libertação. E o que é a filosofia? É pensamento ágil, que procura sê-lo. Acaso não é o pensamento a propriedade mais própria do ser humano, o qual, todavia, na maioria dos casos, ainda assim o despreza, preferindo o acto bruto, a violência física, desafectuosa e afectada? Pensar, erigir consciência, é difícil. Mas essa dificuldade, se empreendida, salva de tudo, porque é ela mesma a sua própria superação. A filosofia, que não é senão pensamento desenvolto, ensina-nos a escapar ao erro. A filosofia é fuga e desvio: se lhe seguirmos na peugada, rapidamente aprenderemos a esquivar-nos às condições e imposições do sistema vigente, esse erro; se lhe seguirmos na peugada, rapidamente nos tornaremos aventureiros de nós mesmos, pois que rapidamente nos levará por desvios íntimos mais vivos e entusiasmantes, convidando-nos, posteriormente, a lançar pés ao caminho, à verdadeira aventura, como fazem os orbívagos. Tanto quanto possível, claro está. Mas a filosofia, ou se quisermos, a reflexão, cria e recria consoante é seu predicado. E liberta-se aquele que a faz sua. Dificilmente haverá aventura que valha àquele que não trate de levar a cabo, num registo minimamente dedicado, a sua auto-edificação. Há certamente uma procura a fazer nos livros e na arte detentores de um conhecimento das coisas que os seus vários autores proporcionaram. Sem esta preocupação, sem esta busca, poderemos vir a dar por nós, e pelo nosso potencial criativo (nem que seja sonhar), numa estagnação que nos assustará, e mais ainda por virmos a perceber o quão difícil será sair dela, mesmo que viajemos, que façamos desporto, que passeemos à beira-mar ou nele mergulhemos. O mau carácter desenvolver-se-á até na mais paradisíaca das ilhas, se aí existir um ser humano incauto. Da mesma forma pode o estudioso cair no mesmo erro. A ambição ao eruditismo só o fará acabar como os velhos tomos que lê - bafiento.

Apesar de fomentarem o sentido de aventura, tanto a literatura como o cinema, ou qualquer outro suporte de aventura estática, como os jogos de computador (estes abonando ainda mais para o que digo em seguida), são a forma menos saudável de o espírito se libertar dos seus enleios consuetudinários, precisamente por tais alternativas serem meros sucedâneos de libertação, subterfúgios, que, a partir de certo ponto, poderão tornar-se no contrário da sua boa intenção e fazer-nos procrastinar a vida em vez de vivê-la. Dadas as circunstâncias, i. e., o investimento vital reduzidíssimo das políticas nulificantes deste Mundo, compreende-se tais recursos. Por isso mesmo as artes deviam ser mais esse instrumento de combate pelo humano. Mas, de facto, uma aproximação mais verdadeira da libertação espiritual só pode atingir-se por meio da aventura praticada no terreno, na vida real, com riscos reais, onde nos tornamos um com a vida, onde a imaginação se coaduna com a realidade, ao passo que o espectáculo - tal como a Internacional Situacionista o elaborou - aliena e separa da vida. O cuidado de pormos em prática a aventura, qualquer que seja desde que genuína, ajudar-nos-á a salvar a pele daquilo em que nos estão a tornar: pedras autotélicas. Perante isto, a criação e a expressão artísticas só podem ser um bem. Aqueles que não desfrutam desse bem, do seu potencial criativo, não vão além das horas que gastam ao telefone ou na internet, dos copos que bebem ou das substâncias que inalam. E quando digo que a verdadeira aventura é no terreno, digo que o seu contrário é apenas podermos conhecer o mundo por via mediática, por aproximação sensível. E ainda assim julgamos conhecê-lo. O que existe é, pura e simplesmente, noções sincréticas, previamente orientadas por um mediatismo imediato e imperiosamente defeituoso. Na era da informação mediatizada, isto é, que parece o Real mas não é (a vivência directa da vida, não mediatizada, é que é o Real), em que o espectador julga estar a par e poder elaborar uma opinião justa, embora não seja muito mais do que mero receptor, apto apenas a inferir, e em muitos casos sem quaisquer filtros, vale-se mais pelo que se cala do que pelo que se diz (furtando aqui a Camus, em O Estrangeiro).

O outro, o nosso semelhante, é também um facultador de aventura. Acaso não é a pessoa desconhecida, amigo ou amante, terreno explorável? Uma conversa tida com alguém, plena de consenso, divergência ou mera diversão também pode trazer-nos muito daquilo que nos dá a aventura levada a cabo num país ou numa terra diferentes. Isto faz da amizade, ou companheirismo, um excelente recurso aventureiro, que nos permite escapar tanto de nós como daquilo que nos rodeia ou, pelo menos, aliviar o ónus do mal circundante. Mas há ainda um receio que persiste de nos aventurarmos no outro, no desconhecido. Vivemos acomodados ao nosso corpo e ego, a uma imobilidade espiritual crescente, egoísta e, apesar do vazio que lavra por esses espíritos fora, alimenta-se a feno um iludido egotismo. Mas fazemos questão de viver em comunidade... Ao mesmo tempo que segregamos soturnidade, vamos afogando nos nossos maus humores a jovialidade e abnegação do sátiro que potencialmente somos. Mas claro que, deixo a ressalva, em não havendo empatia natural pelo outro, por determinado lugar desconhecido, não haverá razão para encetar tal expedição. É procurar noutro lugar. Pois que nem todo o lugar - humano, artístico ou geográfico - tem de ser cativante. Há, ainda assim, espaço para todos.

Se se fala do outro como meio para a aventura, ou para um tipo específico de aventura, isto é, a partilha, também o sexo tem aqui relevância. Talvez até mesmo, no que toca ao relacionamento humano, seja uma das mais marcante experiências ou formas de aventura que podemos buscar no nosso semelhante, desta vez no seu corpo, através do qual se exploram experiências erógenas, e todo o nosso ser parece exteriorizar-se justamente com o orgasmo, essa fuga, por excelência, de nós próprios. Trata-se igualmente da forma mais eficaz de libertação por comunhão, a par de uma necessidade fisiológica. E talvez essa necessidade, uma vez que inata, justifique a natureza aventureira do ser humano. Se aceitarmos o sexo enquanto forma de aventura, aceitamos o sentido de aventura enquanto natureza inerente ao ser humano.

O sentido de aventura, no plano hodierno, representa acima de tudo, especialmente para os espíritos mais revéis, a necessidade de fuga. A fuga à prisão entediante e asfixiante da condição de cidadão. O Estado, enquanto organismo de um egoísmo colectivístico, remete-nos constantemente para o sonho estático, para o espectáculo, para o lugar de meros espectadores sentados, enquanto nos exaure com trabalho que, em vez de dignificar, como apregoam, traz senão ao de cima, na maioria dos casos, os nossos mais vis defeitos de carácter, como o sentido de competitividade nociva, inimizante, que nos aliena da nossa própria formação enquanto indivíduos dignos da sua humanidade, consigo e com os outros, abandonando-nos à falta de vontade própria e de autonomia. O álcool, as drogas, o entertenimento e as artes, por mais que doa, são elementos, por excelência, de fuga às ordens a que estamos obrigados; são as unidades de aventura mais ao alcance, mas também as mais esgotáveis: urge sempre voltar a elas. Corremos cada vez mais o risco de já não sermos vidas mas projectos governamentais. A maioria das pessoas não pratica algo de que gosta; trabalha antes para os outros, não para si. Só quem também trabalha para si se aproxima mais dessa noção de dignidade ou satisfação pessoal perdida. São-nos impostas condições de sobrevivência com ridículas promessas de regalias caso trabalhemos, nos esforcemos e nos portemos bem. É a velha dependência, astutamente forjada, da qual se podem estabelecer os seguintes paralelismos: filho/Pai, crente/Deus, cidadão/Estado. Mas reservam-nos contudo o direito a férias alienantes!, essas fabricantes de turistas feitos máquinas registadoras que para mais compactam a experiência tida nas fotografias que tiram, julgando ainda trazerem algo para contar do pacote «aventureiro» que adquiriram em troca de meses de servidão mal paga. Posto isto, até mesmo nas férias estamos a trabalhar para o Estado... Mas dado que nas férias se trabalha também para o bronze, a nocividade do contrato social a que estamos obrigados torna-se muito menos perceptível, logo que bronzeamos o ar servil com que andámos o ano inteiro... É, quanto a mim, tudo uma grande sensaboria e hipocrisia. Também eu amo o Sol e a praia! Mas perceba quem puder... As velhas receitas precisam de desaparecer. As instituições precisam de ir abaixo, de morrer, e o ser humano precisa de ressuscitar, porque está morto ou moribundo, apesar de haver quem se vá esforçando por estar um pouco melhor, isto é, à margem, nem que seja dentro deles mesmos, com a sua arte e pensamento libertadores. Esses, espero que não desistam da sua contínua auto-edificação. Dessas cinzas renasceriam os indivíduos reconstrutores, unidos na diferença, sem as imposições, sem os jogos de poder: teríamos o pai a aprender com o filho, Deus a habitar o homem, um indivíduo, tanto quanto possível, auto-suficiente, mas que aceitasse e também pudesse contar com o sorriso do seu vizinho, ou pelo menos que não tivesse de levar com a sua índole asnal! Cada um no seu ofício e cada ofício uma achega à multidisciplinaridade, se assim se achasse, a um tempo complementar e independente. Enquanto o Estado tiver que ver com cada um, não existirá autonomia. Por ora resta-nos, como aconselha Thoreau, «declarar guerra ao Estado, [à nossa] maneira, continuando embora a servir-[nos] dele e a extrair dele todas as vantagens possíveis.» (A Desobidiência Civil). Um pouco à imagem do antigo povo Lusitano que, para resistir aos invasores - a poderosa Roma -, se servia das armas dos que dentre os inimigos pereciam em batalha, de forma a resistir-lhes melhor. Hoje - e sempre que necessário - a melhor forma de viver é sem dúvida a da resistência. Desta resistência renascerá, em cada um, o Novo Sátiro, esse novo estado de espírito e consciência, autêntico, verdadeiro para si mesmo e para os outros. Só então tornaremos à Vida. Só então estaremos finalmente aptos a viver. 

A resistência à realidade vigente - i. e., política e espectacular - que nos pretende nulificar enquanto indivíduos autónomos e criativos, de forma a inserir-nos num projecto estéril, desumano, interesseiro, é talvez das mais árduas aventuras do dia-a-dia. Uma vez que em todas as aventuras existe risco, há que estar à altura fortalecendo o espírito pelo caminho. «Ética», disse Deleuze, tal como o li na estação de metro do Parque, em Lisboa, «é estar à altura daquilo que nos acontece.» Mas é também estar à altura daquilo que somos. Se somos indivíduos erectos, se temos um compromisso para com esse estádio não só físico mas espiritual e intelectual, a felicidade está de facto em resistir, no cansaço da luta e do caminho e, essencialmente, nos desvios à realidade vigente que nos pretende institucionalizar (leia-se «paralisar») os movimentos. Estes desvios devem ser profundos, conscientes, genuínos. Podemos começar por nós mesmos, passando de seguida ao nosso vizinho, se virmos que é caso para isso. Não é dando palmadinhas nas costas dos outros, nem lhes deixando comida à porta da toca, que eles sairão de lá: mas ajudando-os a sair. Nada é visível no escuro da compaixão anormal. Ao aconchegante abraço fraternal, afectivo, reveze-se a verdade de uma visão depurada, honesta, real e tão drástica quanto persuasiva. De nada nos serve a amizade se esta nos deixar só mentir no aconchego dos seus braços. Não só de protecção precisamos mas de incitação, para que o despertar seja imenso, as acções genuínas, autónomas, belas, magníficas. E que não precisem da anulação alheia para se emanciparem! A viabilização do Amor só se tornará viável consoante a exposição do humano for a do seu potencial criador, enquanto espírito e pessoa autónomos. A Arte é cada vez mais precisa. Uma arte por um lado expressiva e edificante por outro. Criar é a verdadeira natureza humana. Há que persegui-la, incorporá-la, fazê-la viver de facto. E pô-la ao serviço do humano.

As Trelas da Criação


«E escutá-los-emos [aos criadores] favoravelmente, porquanto só teremos vantagem, se se vir que ela [a criação] é não só agradável, como também útil.»
Platão, A República, Livro X, Gulbenkian (Trad.: Maria Helena da Rocha Pereira)

The Lords appease us with images. They give us books, concerts, galleries, shows, cinemas. Especially the cinemas. Through art they confuse us and blind us to our enslavement. Art adorns our prison walls, keeps us silent and diverted and indifferent.
James Douglas Morrison, The Lords

Nos poetas, sempre me desagradou a forma emotivamente empinada e entoada com que recitam os poemas: sempre me pareceu dar-se mais importância ao elevar do nariz, do que ao que o poema diz. Talvez porque não diga muito...

A criação (que aqui pretende incluir literatura e arte) dos nossos dias faz ainda amiúde evocar a frase que Isidore Ducasse dirige aos escritores, se lhes opondo: «Se sois infelizes, não é preciso dizê-lo ao leitor. Guardai-o para vós». Podemos encontrá-la nas suas Poesias; e esta também: «o homem não deve criar a infelicidade nos seus livros. É querer, a todo o custo, considerar apenas um dos lados das coisas. Ah, que maníacos uivadores vós sois!» A criação artística em geral - em que por exemplo o cinema e a música são também especialistas e dos sectores artísticos mais influentes -, segundo a forma como é adoptada pelos respectivos criadores, redunda no seu mais pleno contrário: a moda decadentista,  uni-prismática, de publicitar os próprios males, ou a ideia de que a Vida é má e infeliz através de um mero caso,  de uma mera perspectiva. A vaidade da decadência tão-pouco destrói para voltar a criar: fica-se pelo definhamento, pela tendência puramente auto-flagelativa, barrando a margem de manobra à potencialidade da perspectiva e acabando no fetiche da queixa. Uma masturbação que executam com o órgão errado...  Parece ser essa a única resposta que têm a dar ao estado das coisas, ao regime social estagnante em que vivemos - isso, sim, é mau! - que nos quer plácidos e domados e infelizes, e que, além do mais, é totalmente indiferente a tais amuos artísticos. Vejo-nos chegados a um ponto em que a dor, essa condição tão natural ao ser humano, que nos incita à expressão artística de forma a projectá-la para algo maior, como uma revelação, parece descer ao patamar do exibicionismo. É preciso uma certa capacidade de auto-educação para não cair nos mesmo buracos que os outros, que se limitam aos estímulos do mimetismo e da vaidade.

Com o cristianismo fez-se da mortificação atributo do ser vivente. Em vez de se caminhar, rasteja-se. Vivemos uma humanidade de crucificados e lamentosos, de gente perdida, submetidos a uma herança colectiva tendencialmente desairosa, que assumimos há demasiados séculos, e tudo por termos aprendido a crer que a possibilidade nunca está aqui mas além. É uma crença entrevada. Uma herança de que, hoje camuflada por uma era pretensamente moderna, não abdicamos contudo: não conseguimos, não nos concedemos ainda a liberdade de não imitar. O mimetismo, enquanto fenómeno de padronização comportamental, opera por dever e é estulto. Prometeu roubou o fogo em vão; a queda de Lúcifer é utilizada como mera metáfora de perdição, quando devia ser vista como a única queda admissível... A queda de Lúcifer é a libertação de Lúcifer: não caiu, atirou-se, para se livrar da orientação opressiva do grupo e do líder. Prometeu trouxe-nos o fogo dos deuses, para que os humanos vivessem. Mas tê-lo-emos aceite?

Não é possível falar-se de uma humanidade linearmente experiente porque a humanidade encontra-se num estado de juventude constante, como se estivesse sempre a rejuvenescer (e aqui a acepção é negativa). Há uma evolução, claro. A humanidade clássica é diferente da moderna. Liga-as um legado histórico, claramente. E se há uma evolução, há uma passagem. Só que essa passagem, parece-me, é do tipo estafetas... Ora, o legado histórico, por si só, nunca poderá ser suficiente numa humanidade que se interrompe constantemente - morre o pai, continua o filho, que terá de aprender tudo outra vez - e que desde sempre, para mais, foi mal governada. A humanidade é, em primeiro lugar, fragmentária, e por isso está submetida a uma aprendizagem que se interrompe, como a própria vida, destinada a recomeçar noutro lado, na tábua rasa de outro corpo e outra mente. É algo cíclico, quase vicioso: há uma paragem e um voltar a arrancar, e um retorno a essa dinâmica. Continuamente. Daqui podemos inferir que a humanidade, num sentido profundo, nunca aprende de facto. Pelo menos de uma forma eficaz, consecutiva, triunfante. O processo de aprendizagem a que está sujeita é reincidente: fá-la sempre cometer, século após século, geração após geração, aquilo que considera erros. Não existiu, até agora, uma passagem a um estágio diferente, realmente diferente do anterior; e se existe hoje um conceito de humanidade, tal só foi conseguido através da imposição de leis. E se há uma tentativa de superação desses erros, deve-se, talvez, aos  seus mais preocupados agentes: os que cultivam a Arte e o Pensamento. Só esses delineiam o devir. Mas onde estão eles hoje? Pior, é que os agentes patogénicos, como o Governo e suas Instituições, são o verdadeiro sinónimo de Estado, que é de base empresarial, isto é, parasitária, o que, inevitavelmente, acaba por influenciar todos os elementos constituintes de uma sociedade. Os Estados, que são organismos estatistas, promovem a estupidez, a banalidade e a subserviência. Não lhes interessa o indivíduo e seu colectivo crescimento intelectual, cultural, humano, mas unicamente o crescimento económico, infra-estrutural e tecnológico do próprio organismo estatal, como se independente dos seres que o promovem e os seres que o promovem fossem meros animais que, cegos, trabalhassem para o organismo. E pelo andar das coisas, são-no. Há até quem goste! E pouco mais, a menos que nos despachemos (e chegaremos a tempo?), se poderá fazer quanto a consciencializar e erigir de facto uma Humanidade, essa noção ainda tão abstracta, que serve senão a demagogia, pois que o ser humano, sendo limitado de tempo de vida, carente de atenções e sofredor de profissão, é de igual modo limitado em si, de vistas curtas: nunca concretizará o que aprendeu porque a única forma de o fazer é passando o conhecimento a alguém que está ainda a crescer, e que tem de aprender tudo do princípio, e, na maioria dos casos, aprender o mesmo que aquele que o ensina aprendeu, cometendo, por isso, todos os erros de uma vida (uma forma de aprender, diz-se e às vezes até resulta, mas que, à escala aqui tratada, é uma reincidência). A Humanidade é, paralelamente, constituída por ilhas de uma subjectividade feroz e índole aniquiladora, natureza que um sistema monetário vazio só ajuda a fomentar. E os agentes da alienação que funcionam em concordância com o Estabelecido, como a comunicação social, o entretenimento televisivo e cinematográfico, a má literatura, as instituições escolares/académicas, a própria família, a própria cultura, a religião católica, não olham senão à possibilidade competitiva de lucro, para obtenção de distinção e poder. É como dizer que a esterilidade é suficiente: a ilusão económica de que o dinheiro valoriza é o bastante para se pensar que se vive.

A Igreja é das mais descaradas e sardónicas das instituições: a empresa do Bem. A grande responsável por criar anhos por encomenda dos Estados. Até que os Estados, tornando-se suficientemente poderosos para já não temerem a Deus, foram dispensando a Igreja. Mas os cordeiros já tinham, contudo, sido moldados, molde esse que nos afecta ainda. Agora a Igreja continua servindo o Estado, e o Estado vai deixando-a estar. A aniquilação do valor humano, per capita, nasceu deste interesse mútuo. Ao indivíduo sempre lhe foi dito: «Não serves para nada senão colectivamente e fazendo pela "Entidade" (Estado, Deus, qualquer coisa desde que não exista em concreto...) que te é superior.» As instituições são, portanto, a mordaça do espírito humano. O nosso legado, são trelas. A nossa vida, um morbo. Não há uma comunidade de indivíduos, mas de sujeitados.

Hoje, essa herança espiritual de lesa-humanidade revela-se por sucedâneos, elementos com nome de código que não já o religioso, antes transversais na imagem mas com a mesma base, que continuamos regando aqui e ali sem sequer nos apercebermos: os penosos de hoje não sabem porque penam, acham simplesmente que têm de ser assim. O mal instalou-se neles porque está por todo o lado, disfarçado de Bem. A alternativa não é melhor ou menos alienada: substituírem o Deus pelo Estupor e, em vez de irem à missa, não irem a lado nenhum... Penam por aí, à medida que lhes vão sugando a vida. E os criadores, que deviam dar resposta a isto, acabam por abusar do seu próprio potencial criativo que, no fundo, não mata ou mitiga nenhum tipo de sede, e tudo em nome de uma exposição viciosa e desejosa de aplausos emotivos. Aposta-se nas veleidades de um estilo próprio, pretensamente cativante, que muitas vezes o é de facto, mas que serve apenas a vaidade própria: é inútil, não exalta os espíritos, antes os tolda. Por isso a criação, esse instrumento que devia ser uma «arma» (a única, aliás), que tem todo o potencial para o ser, que devia servir de ameaça constante à estagnação dos seres, se me revela estéril na grande maioria dos casos. E quanto mais para cá no tempo, pior. Tenho ouvido criadores sugerir, mesmo que apenas tacitamente, ser por reconhecimento e compreensão do outro: um «somos iguais!» caquéctico e limitador, em cujo invólucro se encontram em pateta comunhão... Mas por que se desejam tanto mal e ainda assim se abraçam? Não compreendo! A ausência de uma análise centrífuga e nula autognose, distraídos antes por um culto da decadência e da mortificação fetichistas, permite-lhes apenas que se deixem como que submersos, de mãos bem dadas, no lago estagnado das suas próprias lágrimas comuns, para onde ainda convidam os outros, de forma a se sustentarem reciprocamente na permanência desse seu inveterado mal-estar... É a nova religião!, cujo deus é a própria vaidade da auto-decomposição, do queixume, do desprezo pela vida, do deixa andar.

«Eu sou uma jovem fera pagã, em busca das melhores mentes do meu tempo.» Esta frase costumava ecoar-me na mente como um uivo... Eu era mais jovem e ainda cria, mais do que hoje, na Possibilidade. Precisava apenas de saber que eles existiam, esses jovens cheios de vida, espírito e vontade própria (que é como quem diz atrevimento), que não se deixavam lesar completamente pelo mal circundante e que por isso me animariam. Ainda vislumbrei tal luz em alguns, que a custo se iam e vão ainda esforçando por compreender e escapar. Espero vir a conhecer mais. Tenho conhecido uns poucos. Procuro, como procurava, apenas uma coisa nas pessoas - talvez aquilo que mais lhes foge: a vida em si. É a minha forma de me manter de harmonia com aquilo em que acredito: estar vivo em mim, à imagem do poder enérgico do Sol e da maviosa Lua - estão ali e pronto, firmes no dever para consigo. A sua condição é o brilho. E olhai, como são úteis outrossim aos outros! As ilusões do ser humano, as projecções e as introjecções a que se prende, não o deixam realizar-se enquanto ser vital, único, bloqueiam-lhe antes o espírito. Sentados na cadeira do próprio mal-estar, fingem que não é nada assim, habituados e até orgulhosos, pois há quem goste deles e nisso se refugiam. Inseridos como estão nas malhas alheias, não passam de uma armadilha dentro da Armadilha. Uma Armadilha que tem sido senão continuada. Da mesma maneira que o sentido de aventura vai declinando para o visionamento virtual, criando desventurosos ineptos, toda a vida se vê abocanhada pelo alienante monstro hodierno.

Em termos gerais, i. e., em todos os sectores da sociedade, isto só pode traduzir-se em auto-deterioração. Como à sua volta tudo é «assim», e o assimilam, ninguém o tenta superar. O Estabelecido tem-nos pelos colarinhos. São seus súbditos. À maioria fá-los, inclusive, odiarem-se uns aos outros, numa competição ridícula e humana: o ser humano não é mais do que um competidor, é ainda mero animal, que vive tentando superar o outro, quando a tarefa devia ser superar-se a si mesmo.

É um facto bem conhecido o quão mal correm os tempos. Por isso mesmo cada indivíduo, em vez de se deixar infectar, devia fazer-lhes frente espiritualmente e através da força, se necessário, de forma a não deixar o corpo e o espírito prostrarem-se diante do estado das coisas, contrariando o que a televisão nos ensina. Para isso, seriam precisos agentes (as próprias pessoas) que ajudassem, por si ou em conjunto, a esse movimento, a essa acção. É necessário desencadear reacções, por todo o lado, de todos os lados, coisas que os espíritos sedentários e reaccionários não tolerem, de tão atados que estão às suas vidas sentadas. Já que os líderes políticos de nada servem, os outros, os que deviam encarnar a pele de líderes espirituais - como os criadores de todos os géneros artísticos - faziam bem se optassem por outra postura nesta Terra desolada. O que há a transmitir aos seus semelhantes é empresa de grande responsabilidade, já que as escolas deste mundo, e outros agentes de transmissão de conhecimento, pouco ou nada transmitem. A arte é precisa enquanto resposta e ataque, não enquanto simples auto-exposição vaidosa.

A tarefa do ser humano na Terra: suplantar o macaquinho mimético que ele é, quando imita sem reflectir. Combater a estultícia e a redoma do ego egotista. Contrariar o Estabelecido. Enquanto a criação for estéril reprodução ecóica, nunca poderá ser aquilo a que se propõe - criar! - nem quem a cria um criador, se entendermos por «criação» a «auto-superação». Para isso, é necessário primeiro a desconstrução do que nos rodeia e a nossa própria, para depois, peça a peça, empreender nova construção. Nunca para chegar a uma meta: isso é só mais outra miragem! Nada na vida é finalista, nem mesmo a morte, pois que mesmo esta nos reintroduzirá no mundo e no cosmos como parte integrante (e talvez até mais funcional, em muitos casos, do que quando vivos) por meio da decomposição física. Nem então teremos atingido um fim, apenas um novo começo, uma forma diferente de vida.

Indivíduo-indiviso-inteiro


Se se semeia um pensamento belo num terreno de opiniões inférteis, o mesmo não florescerá. Terá o indivíduo que o pense ser também a devida terra. Indiviso e inteligente, reúne as condições favoráveis. É ele a base e a árvore da sua vida: tronco ramificado, uno mas multifário. Inteiro. Assim se associa à vida que pensou. Bela.

Nota sobre a Tolerância





«[...] o dano causado pelos bons, é o mais prejudicial dos danos.»
F. Nietzsche, Ecce Homo, Porque Sou Um Destino, 4, Ed. 70



No plano intelectual, a tolerância é assentimento irreflectido, imaturo; parte do lado irresponsável, preguiçoso, débil e trivial do ser pensante. Há que ser intolerante; consigo mesmo acima de tudo. A tolerância é inimiga do avanço e do fazer e do autocompromisso individuais. Ser tolerante para com a pobreza alheia é permitir-se, por conseguinte, à preguiça. Todo o espírito desmazeladamente consenciente não acusa mais do que as suas próprias incompetências. Cínicos e ínvidos, revoltar-se-ão, depois, contra os capazes, ressentidos senão com a sua meia-pessoa. De resto, este será todo o movimento a que esses toldados e inúteis hão-de saber ainda prestar-se...

Apontam assim, os autómatos-infantes, ao espírito intolerante: «Também tu não és perfeito, portanto, por que és intolerante?» A resposta só poderia ser uma (a que as suas mentes ainda pouco desenvolvidas, vítimas de ideias de base cristãs, i. e., de uma cultura do fraco, e de uma hodiernidade alienante que os vitimiza sem que se apercebam, não conseguiriam alcançar): «Sou intolerante porque quero o melhor para mim. Também eu sou o outro; e se o outro for decadente, como poderei, eu que o não quero, tolerá-lo?» Além disso, aquilo a que todos tentam escapar a dificuldade é a melhor fautriz da humanidade. A condescendência, por seu lado, é a assassina do espírito e do corpo. Eis então o que na cultura moderna preenche todos os espaços do ser: a ausência.

Não se trata de imperativos para com o outro. Trata-se de rejeitar a contabescência e ser feroz nisso quanto necessário. Reinstaurar o dever para consigo por vero amor a si e à vida, finalmente, e não por caridade, pena ou culpa. Ser bom não é deixar contabescer isso é ser mau. Vivemos uma cultura do desprezo pela vida, da inépcia, do frouxo e, incompetentes, ainda afirmamos ser normal. A compaixão provar-se-á melhor se mascarada de intrepidez, a doçura se ao abrir da mão o que tiver para oferecer for a coragem. Ao invés, o preguiçoso, que nem uma máscara sabe envergar, pretende o seu semelhante à sua imagem, qual vera-efígie onde se reconheça e aplaque é a via mais permissiva do autodesprezo, arranjarem outro igual a si.

Nem isto é um atentado ao ócio, mas tão-só ao espírito fraco, que dia após dia se ilude no escuro da sua caverna, enquanto o tempo em que vive, o útil e belo presente, é adiado. O que acontece? Desperdiça o presente e compromete o futuro, atado a fantasias de incompetência. Os doentes das fantasias, ou da espectacularidade e consumo, desaprenderam a vida. São os lamentosos, os queixosos, os maus leitores, que vivem dos ses e dos sonhos... Ao passo que na realidade, apanharam o gosto ao lamento, à dor, à prorrogação. E depois ainda, fazem colecção de confidentes de todo o tipo, porque se detestam, e porque projectam, no outro e nas coisas, a sua liberdade perdida ― e tudo porque sempre se recusaram a assumi-la em si mesmos: no real. Desconfio mesmo que, em certos casos, possuam o desejo oculto de despejar o seu mal-estar para dentro do outro, a quem ainda chamam de amigo. Vêem neste um padre da sua desgraça; o mesmo acabam fazendo com a poesia e a arte, que tornam receptáculos exclusivos de maleitas. Portanto, para esses, a amizade e os elevadores do espírito são meros depósitos para onde tentam esvaziar-se. Mas, se são eles mesmos, operários de índole fabril, os produtores de tal indústria residual!... Tudo aquilo a que se agarram amizade, família, psicólogos não passa de uma forma pusilânime de fuga; e tudo sem olhar a meios (por vezes a saúde deles e a dos outros, que os aturam) para atingir nenhum fim! Parece que, de tudo o que vive, introjectam apenas definhamento pessoal: não imitam o bom exemplo (i. e., o que é bom para eles), invejam-no. Parece que não suportam tudo o que é vivo; querem tudo à altura do seu ego baixo e macabro.

O espírito intolerante de que este texto fala, não tem mais direito a sê-lo do que o preguiçoso àquilo que é. Mas é contudo norma que seja este a achar-se vitimizado pelo simples facto de o intolerante nutrir uma opinião (esperemos que fundada, não vá cair no mesmo que o seu ímpar) sobre a inutilidade do ínvido preguiçoso o que revela muito... , pois que este, demasiado preguiçoso para sequer formular uma opinião razoável, sabe não outra coisa que empertigar-se e balbuciar. É a capacidade de argumento dos espíritos incomptos.

O espírito intolerante só o é porque teme por si e porque, acima de tudo, conhece o sentido solar da Vida: ao deparar com um mundo de anelídeos, salvo reduzidas e defuntas excepções, antevê, em desesperada introjecção, devido à falta de exaltantes referências entre os seus pares, restar-lhe senão o mesmo estupor. Eis então a razão da intolerância do espírito, eis o que teme (sim, que a sua intolerância mais não é do que o seu saudável instinto de defesa e ataque em acção): sente receio que, sobre a sua promissora condição humana, tal como a sonha e respira, recaia o avatar da minhoca (bicho a que aqui se faz alusão meramente a título metafórico, pois que todos lhe conhecem a utilidade; a Natureza é de carácter útil). O intolerante, cujo espírito é afirmativo (Nietzsche), receia definhar antes do tempo feral, à imagem do que acontece com muitos dos seus semelhantes. Mas não só por isso é intolerante. É-o também porque, a par de compreender e/ou deduzir as variadíssimas causas da preguicite, a não pode aceitar, por sobremodo acreditar em si e (ainda) naqueles a cuja espécie pertence: (ele é também os outros). Pois que também o intolerante possuiria todas as razões para não fazer nada, só que, forte e perseverante, debate-se e vence-se a cada confronto, instrui-se, reinstaura-se e subleva-se acima das perniciosas influências da histórica contabescência compreende o mundo, a Existência, fora da aviltante esfera cultural moderna (pseudo-cultural).

A preguiça impregna o corpo e a acção. Os motivos, são de origem exterior, está claro. Mas é da incapacidade de percepção do seu permissor que aquela se desenvolve; uma percepção, portanto, já anteriormente danificada pela grande conjectura da História (que, com um pouco de atenção e análise, ficará claro para todos). Não há culpa, portanto. Há trabalho a fazer...

Assim, o espírito intolerante, por via de um processo em que a sua consciência transmigra para fora de si e se aproxima do Todo, quer procurar e reconhecer-lhe as fundações, tanto quanto possível. Ainda que nem tudo lhe seja claro, entrevê. É o amigo da claridade, do saber. Indiviso entre Si mesmo e Deus, Terra e Cosmos, Mal e Bem, esta espécie de demiurgo tenta olhar, acima de tudo,  com entendimento. É o filósofo: aquele que procura entender. E a par de entender, como parte que é inserida no todo, não deixa de negar, de atacar, de intervir e de exigir Mudança. Eis porque não tolera. A tolerância é cega, vassala da estagnação; o filósofo, nunca.

Notas sobre o Homem


Eu pensava que Deus era a pior invenção dos homens, mas não: os homens são ainda a pior invenção de Deus.

O homem inventou Deus porque não se soube inventar Homem.


A única e verdadeira religião, é a estupidez.

Saturday 17 August 2013

Autoria/Criação vs Progénie/Procriação


A função do homem enquanto homem, não é procriar. Esta é a função do animal, do homem enquanto animal. A função do homem enquanto homem (partindo do princípio que terá uma função), é a de criar (o que quer que seja). E se o homem é homem para além de animal, então esse é o seu predicado. O desejo de procriar advém de instintos básicos naturais. Desejar só isto, é ser só metade: o ser humano não se traduz somente em instintos básicos. Quem se fica pela metade, julgando que se está a realizar enquanto indivíduo, parece-me a mim que tão-só se descura e se trai. Não acredito que a procriação conceda plena auto-realização. Que realizaram, mesmo apesar de todo o milagre inerente a dar à luz (mãe) ou a quem preside (pai), é tudo com que posso concordar.

Esta inclinação teórica deve-se, também, ao facto de me parecer que aquele que nasce se torna, mal nasça, a meu ver, demasiado independente; de uma vida tão própria que quase me parece demasiado (ainda que o compreenda enquanto potencial pai mas, enquanto tal, o tente não alimentar) que o progenitor se sinta plenamente auto-realizado por o ter tido, e isto porque, do meu prisma, é como se não fosse obra sua. Trata-se de uma obra de outro tipo, uma obra orgânica e psicologicamente ímpar, embora criada por intervenção de outrem, trazendo consigo características de outrem, mas que, ainda assim, ainda assim, pertence-se mais a si mesma do que ao seu criador; no sentido em que cada um, cada indivíduo, é tão mais seu quanto a sua consciência lho permitir e para isso tiver, claro está, capacidade. Haverá casos que contrariarão isto, não para aqui chamados, porém. Tão potencialmente independentes, que não terão sequer, isto é, por força de obrigação, de dar satisfações a quem quer que seja por existirem. Porque o filho, na realidade, é livre, se quiser, de se desvincular moralmente dos respectivos progenitores.

Esta sintomia em nada pretende anular o sentimento de amor, de orgulho, mesmo de pertença que se sinte por aquele a quem se deu vida ― milagre provavelmente magnífico, repito ―, nem vice-versa. Eu, que já sonhei que era pai, que tinha a minha filha nas mãos, havia água e sol, e ela, com uns mesitos apenas, brilhava tanto que eu não sei se a luz vinha do sol, se dela. Mas, apesar da indissociável ligação (se forem criados laços, está claro, pelo menos biológicos), o filho não pertence aos progenitores com a mesma propriedade a que o objecto artístico está sujeito ao autor. Logo que nasce, existe demasiado por si. Há uma ligação (subaquática) entre o continente e a ilha, no entanto a ilha está isolada ― é já ela mesma e não apenas uma extensão do continente. Tal como o filho não é mera extensão dos pais. Daqui o sentido de indivíduo indiviso. O reconhecimento, a consanguinidade, são meras aproximações: o que nos liga verdadeiramente ao outro, mais que tudo, é a imaginação, essa forma de nos repensarmos. Já as obras do criador, terão sempre mais dificuldade, senão impossibilidade, de existirem sem aquele que lhes dá a forma e o sentido. Mesmo depois da morte do autor. Posso conhecer certo indivíduo, gostar dele e pouco ou nada me interessar a respectiva progénie. Quanto à obra artística, não há quem não tenha sempre uma maior curiosidade relativamente ao respectivo criador. Para além do mais, o criador estará sempre no seu pleno direito de as reclamar como suas, de sua autoria, que elas nunca o hão-de negar. Entre obra e autor, jamais poderá haver um conflito moral, embora entre autor e obra isso seja já possível, o que, contudo, não interessa ao tema aqui tratado. Pois é claro que poderão haver imensas teorias possíveis quanto à autoria e à obra, por quanto haja de autores que possam achar-se distantes da sua criação. Mas há que discernir que aqui se faz a comparação-distinção entre o grau ou peso da autoria e progenitura em relação ao objecto criado. Do que concluo: só à obra criada criativamente (seja qual for) poderá sobrevir auto-realização. E, contra um possível argumento: nunca a prole humana ― apartando-nos, desde já, de todo e qualquer argumento poético-sentimentalista ― poderá ser considerada do ponto de vista criativo, senão do da realização natural, biológica (mesmo tendo em conta todo o milagre subjectivamente inerente à mesma: a poesia abarca sempre tudo). Os homem e as mulheres precisarão bem mais da sua obra do que precisarão dos seus filhos, ainda que do ponto de vista afectivo e biológico estes lhes sejam, de longe, mais importantes.

Dediquei-me aqui, ainda que concisamente, a uma análise tentativamente abnegada, relegando-me tanto quanto possível do grave e tenso pressuposto dos laços afectivos, de forma a aproximar-me melhor daquilo que importa: o indivíduo enquanto potencialidade, isto é, o indivíduo emancipado.

Feliz,

a Humanidade só o há-de ser quando o derradeiro padre for enforcado com as tripas do último dos príncipes.

Jean Meslier, Memórias