Sunday 18 August 2013

Morte-Vida-Morte: um Possível Encadeamento

(Para uma reestruturação da ideia de morte) 







«MORTE: Estás pronto?
CAVALEIRO: O meu corpo está, eu não.» 

in «O Sétimo Selo», Ingmar Bergman



Mesmo antes de ser ideia, a morte é já pressentimento naquele que acaba de nascer; momento cujo primeiro choro me parece significativo, no sentido em que se afigura como prova da intuição da sua fragilidade, como se o recém-nascido adquirisse, nesse momento, a prenoção de que tem (sem o querer vestir de negro destino) o tempo contado. O que digo é que, de alguma forma, há desde logo no nascimento a intuição desse par de opostos (entrelaçados) que é a vida e a morte ― o reconhecimento de uma vontade de viver cujo corpo, já fora do conforto do ventre materno, infere também a sua vulnerabilidade e, como que por associação, a sua perecibilidade. As tendências idiossincráticas e fisiológicas próprias do indivíduo, assim como as estruturas afectiva e social que pelo caminho o vão moldar, reúnem os ingredientes necessários para que dificilmente o indivíduo cresça detentor de uma capacidade de desconstrução e emancipação intelectualmente exemplar face ao Estabelecido. A modernidade é disso o exemplo máximo, cuja realidade, sempre abortada por via da aparência que dimana de todos os sectores da vida institucional, surge ao indivíduo adulto com a indestrinçável confusão do sincretismo infantil.

A noção e o valor da vida, porque intrinsecamente ligados a uma estrutura egóica, desenvolveram-se segundo as limitações seculares da religião e da cultura. Ainda que os respectivos efeitos possam, hoje em dia, à sombra do laicismo e da globalização, revelar-se de uma subtileza tal que parecerá absurdo à maioria achá-los já redutores e lesivos, em verdade continuam a limitar-nos a olhos vistos, pelo simples facto de, para trás de si, terem deixado um longo rasto. Para o bom entendedor, um olhar retrospectivo basta. A decadência e confinamento materiais a que o alienante poder do mercantilismo tem vindo a subjugar o espírito humano, assim como, por oposição, o recurso a uma reorientação espiritual que as mais recentes gerações perseguem cada vez mais, comprovam-no. Posto isto, a noção e o valor da morte encontram-se igualmente viciados.

Na tentativa de uma reestruturação da ideia de morte, arremessarei as minhas objecções, que tentarão seguir no sentido de inserir esta ideia num plano cósmico, partindo inevitavelmente de uma visão humana mas tentando desenleá-la do emaranhado do respectivo ego, ou seja, desconstruindo a ideia de que vida e morte se opõem e, ao invés, encadeá-las segundo uma perspectiva holística e orgânica do Universo.


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Tal como antes de sermos não éramos, tornamos ao não-ser. A morte física e, segundo a lógica, intelectual do ser, representa o fim da pessoa enquanto identidade. É a perda dessa identidade que nos parece incrível, intolerável, inverosímil. Parece-nos impossível aqui termos vindo e erigido toda uma vida só para desaparecermos para sempre. A questão prende-se, portanto, com o aspecto egológico. «Eu que tenho um nome, eu que sou o que sou e que estou tão certo disso como existir, vou desaparecer um dia?!» É esta a quase indignação que certamente já nos assaltou a todos e que de alguma maneira perdura como um incómodo, mesmo se, num estágio já adiantado da vida, a relação com essa realidade futura esteja já aceite e até assimilada segundo uma concepção cíclica do Cosmos, isto é, num plano físico, em que as existências não resultarão num fim finalista mas transmigratório, sendo que a substância que somos, ou seja, a matéria e a energia de que somos feitos prosseguem na sua elementaridade, noutros moldes já que não o da identidade humana.

Parece-me natural que a consciência da morte enquanto fim da identidade tenha potenciado todas as complexas mitologias conhecidas. Partamos então do pressuposto de como a morte, isto é, de como a nossa finitude pode operar como força motriz do ser vivo e, em particular, do criador. Foi o pressentimento do nada que, à custa de o pressentirmos a fundo, na ingenuidade natural de um ser intelectualmente incipiente, nos fez criar deuses e Aléns: criámo-los para nos esquivarmos à possibilidade incrível de não haver continuidade para a nossa vida depois da nossa morte, ou seja, pela simples razão de nos custar que a nossa vida, a que nos habituámos com a mesma força que as raízes de uma árvore à terra, acabe. Com isto, introduz-se a ideia não só de crença mas de criação, que é o que mais interessa à moral deste texto. Todo o exercício de criação exprime, para além de uma vontade de viver, uma vontade de sobreviver à morte. E não é aliás a procriação o seu reflexo mais imediato? Se o aceitarmos, aceitamos a criação como seu expoente máximo. 

O ser humano, esse eterno condenado a uma consciência reactiva, é capaz de tudo para se salvar de deixar de existir. É a consciência da morte que despoleta, proponho eu, essa reacção, esse mecanismo de defesa que projecta o ser humano na vida e que lhe serve de base sobre a qual ele se inventa e reinventa a própria Vida. A consciência da morte é o lugar onde o próprio valor da vida se estreia. Ou seja: a consciência da morte funciona, a priori, como princípio motivador. Sem a consciência da morte não haveria, por si só, valor possível a atribuir à vida. Da mesma maneira que o dia nunca poderia ser claro sem a consciência da noite, nem a noite escura sem a consciência do dia. A noção de valor expande-se com a comparação de opostos. A morte é-nos tão intrínseca como estarmos vivos e determos uma identidade intelectual e fisionómica. É parte de nós. Se somos um começo, também somos um fim. Não há outra forma de existir senão a dicotomia de elementos aparentemente opostos mas que afinal acabam-se revelando indissociáveis. Precisam um do outro para existirem, para serem o que são, segundo uma concepção humana das coisas. Existem portanto distintos mas entrelaçados.

Mergulhemos um pouco mais fundo no problema cultural da morte. Se nos conseguíssemos afastar da concepção egóica que temos de nós mesmos e da vida, não depararíamos nós com a realidade de que tudo nasce de uma espécie de morte, idêntica àquela que, mais tarde ou mais cedo, tudo aquilo que encerra uma identidade, vivo ou mesmo inanimado, virá a conhecer através da acção do tempo? Tal como é um facto que vamos morrer, não o é também que nascemos de uma espécie de morte, se considerarmos a morte uma espécie de nada, de inexistência? Pois para o «antes de termos nascido» também existe em nós a ideia de nada, isto é, de que não existíamos. Nessa altura havia, no máximo, uma ideia abstracta de nós na mente dos nossos progenitores, mas não existíamos no sentido físico, consistente, substancial da palavra, tal como depois de morrermos, segundo esta visão, deixaremos de existir, de ser, no sentido físico, consistente e substancial da palavra. Um e outro nadas não serão então feitos da mesma insubstância? É, pelo menos, uma ideia que me tem acompanhado no tempo, à qual sempre fui buscar suporte que fundamentasse o meu pressentimento do que será a morte, ou seja, o fim da identidade consciente de si. Mas deixo desde já a ressalva, para os mais susceptíveis, de que apenas promovo esta tese como exposição hipotética, plausível, meramente à margem de uma análise pessoal. Sinto-me então inclinado para a proposição de que o fundamento da vida é a própria morte e que esta é o destino final de todo o ser vivo enquanto identidade, essa coisa, no fundo, tão abstracta. A vida nasce da morte e à morte torna.

Muito à imagem do que Sade nos explana na sua obra A Filosofia na Alcova, com a desconstrução que faz da ideia platónica de transmigração das almas, que o autor da República sobremodo poetiza, há na vida natural esta fúria de viver, explicada pelo próprio princípio de acção sinérgica entre perecimento e nascimento. Todo o corpo sofre o constante «chamamento» da matéria-mãe, a Terra, esse organismo que, de tão gigântico, nos escapa enquanto tal. Há nisso uma mecânica natural, orgânica. Se olharmos este nosso planeta como um organismo vivo, de que os animais e os vegetais são constituintes, e dos quais ele se serve para se manter ora matando-os ora dando-lhes vida, poderemos compreendê-lo. Os seres vivos encerram em si o mesmo processo, ao procederem à nutrição para se manterem. Assim, os animais e os vegetais perecem para nutrirem a Terra, que volta sempre a dar os seus frutos outros animais, outros vegetais , segundo o continuado ciclo em que a caracteriza. Posto isto, se há vida após a morte, o mais provável é que, segundo Sade, tal fenómeno ocorra na própria Vida. Partilho desta visão. Se há transmigração anímica, é mais plausível que se dê através da matéria (cuja alma é meramente a energia), por via da terra onde tudo se mistura e donde tudo brota. Disto podemos nós estar certos. Agora, depois da minha morte, que poderei eu dizer de mim tal como me sei? Que poderei eu mais do que a Vida (já por si tão inefável) em que existo agora? Vejo, entre corpo e espírito, um contrabalanço mútuo, sinérgico, qual matéria e energia, que, afinal, os torna um só. Sem essa dualidade una, sem essa união dual, não haveria aquilo que conhecemos como Existência. A Vida, o Mundo, o Universo é a coexistência dos dois. Tudo o que queira ir para além disso, segundo os moldes da crença, parecem-me projecções demasiado ansiosas e fantasiosas. 

O processo que se segue a qualquer nascimento resulta sempre e inevitavelmente no desaparecimento identitário desse mesmo objecto. E se a sua matéria de alguma forma persiste depois, é apenas sob a forma de partículas isoladas e reintegradas na terra do planeta que o sustentou: o que ele dá, a ele torna. Ideia assaz conhecida; primitiva, arquetípica. A morte, poder-se-ia dizer num tom mais poético, chega mesmo a ser um desejo tácito da matéria, do corpo, como se este gritasse surdamente por ela desejo de tornar ao que primordialmente foi. Uma metáfora do sono acompanha este raciocínio: todas as noites dormidas podem aparecer-nos, por associação, como um ensaio do fim último; o descanso de um dia esgotado como morte de uma vida esgotada, isto é, que se completou. 

Existe no cavaleiro de Bergman (que cito em epígrafe) essa expressão implícita de desejo de morte pelo corpo. É um mecanismo imanente a todo o organismo vivo; do qual todo o ser vivo tem, pelo menos, consciência sensível. O declínio natural dos corpos nos seres animais, a senescência é a prova mais próxima do que pretendo demonstrar, que não é mais, afinal, do que um atributo da vontade suprema e insuperável da Natureza, processo através do qual ela se expressa, vive e se mantém: a morte dá lugar ao vivo. Contudo, o Eu humano, esse elemento espiritual, ou espiritualizado, tido em conta de etéreo, quase extraterreno, quer, ao invés, perdurar, pois que é «consciência», além-carne, além-finitude. Outro aspecto que, oposto ao desejo de morte do corpo, se encontra outrossim implícito na epígrafe de Bergman. O cavaleiro, suspeitando já do garante divino da sua imortalidade, evita a morte. Então, já sem deus a que recorrer, desafia-a para um jogo de xadrez, de forma a dar mais tempo à sua passagem pela Terra. O cavaleiro não quer a morte, quer perdurar, dar continuidade àquela sensação que a primeira passagem do filme na companhia da família de saltimbancos nos revela, naquele dia áureo que, tal como a ele, nos surge claro e perfeito em si. Posto Deus em causa e seguidamente de lado, toda a vida individual passa a ser mais clara e a ter sentido em si. O medo de uma morte que ele duvida vir a ser amparada pela mão de Deus, incrementa nele o desejo de vida, isto é, de perdurar e desfrutar da vida na Vida, àquem de todas as conjunturas escatológicas que tanto depreciam e desaproveitam o que realmente importa: existir na Terra. Mas há muito que nos encontramos demasiado longe da Natureza para que a possamos perceber. Há muito mais até do que o tempo do cavaleiro de Bergman...

Aproximo-me finalmente do que queria. Nada do que até aqui foi dito em relação à morte é negativo. A impossibilidade de imortalidade, a inexistência de um deus que nos promova a identidade física e intelectual após a nossa morte, não é uma coisa má. Antes pelo contrário: este apercebimento vai trazer-nos de volta à Vida, de volta a nós, se nos consciencializarmos de que somos nós mesmos o lugar que verdadeiramente importa, ao contrário do que tanto o crente da mais baixa casta como o sumo pontífice fazem. Estes pouco ou nada, ainda que por razões diferentes, querem saber desta vida, da vida natural, essa mesma que existe num planeta cercado de astros frios e treva; antes a temem, a detestam e a acham suja e impura; querem-lhe mal. Ao primeiro, devido a toda uma conjuntura de interesses alienantes, nomeadamente político-religiosos, ficam-lhe reservados os paliativos da crença. Por desespero acredita, tal como lhe ensinaram, que existe lugar melhor para além desta Terra. Ao passo que o sumo pontífice prende-se, por via da sua posição, com a promoção terrena do seu estatuto de representante divino em detrimento dos restantes; ou seja, transpõe tudo, de um modo deturpado e deslocado do sentido do real, para a categoria do ideal, esse modo tão subtil e aparentemente plácido de odiar a Vida. Da mesma forma que à vida, o sumo pontífice, assim como o simples padre com a sua velha sotaina, amortalha-se com as vestes faustosas que, ao mesmo tempo, impõem o respeito espectacular da aparência, que tantas cervizes fez e faz dobrar. Esta tipologia religiosa, principalmente a institucional, alimenta uma profunda má-fé contra todos os constituintes naturais da vida humana, como os instintos. A pregação do sacerdote reside numa vontade ditatorial, isto é, de ditar aos outros o molde de uma realidade idealizada, que ele chefia. Uma pregação que, embora camuflada de bem, tem em si o expoente máximo de toda a castração, de toda a vontade de domínio sobre o outro, fazendo o desprezo vingar sobre a natureza e a liberdade individual. O homem projectado no Além, é a representação máxima desse próprio desprezo. Claro que a hermenêutica moderna defende-se também modernamente, segundo a actualização de que toda a questão bíblica é para ser vista como metáfora. Claramente! Era como devia ter sido vista sempre. Mas não foi. O que a história judaico-cristã deixa para trás, a forma como os seus influentes fautores agiram, principalmente no que respeita à formação do poderio da Igreja católica e dos actos abusivos que esta disseminou pela Europa em nome de um deus estrangeiro, não a iliba. Para além do mais, se olhada a fundo, facilmente veremos tratar-se de uma visão demasiado egocêntrica e projeccional. Nada disso nos interessa. Preferimos a coragem de quem aceita o imenso vazio sideral e, no lugar da debilidade da crença, se serve da confiança e exultação próprias da Arte que se presta à vida e ao humano, essa mesma vida que nos ensina, a sós e em conjunto, a construir-nos e a Ser, e que reconhece que o fogo distante das estrelas, só porque distante, nada tem de frio. Esse Ser sabe que a imaginação nos aproxima uns dos outros e das coisas, do real humano, do fogo circundante. 

Esta tese, então, cujo assunto tanto assombra o espírito humano como parece evidenciar-se no seu corpo qual chamamento natural (que afinal não é mais do que a força universal que, segundo uma dinâmica elementar, tudo rege), está longe de se aproximar da ideia de que esta vida é mero calvário. Não consigo conceber a vida identitária e consciente para além da morte senão por meio de uma imaginação mitológica, que o crente ou simples mortal não consegue discernir e compreender enquanto mera representação e expressão do pathos humano ― a sua condição existencial, nesta acepção ―, que é o mesmo que dizer que tais projecções têm por base uma subjectividade demasiado egológica e medrosa, demasiado arreigada ao medo da perda, construída à custa de nos custar que um dia iremos desaparecer e, até, que um dia aqui aparecemos. Tudo partiu daqui e é natural que assim tenha sido. Mas natural não acho já que aqui ainda se demore. Aceleremos o passo! A consciência que separa pode também reunir. Convém não esquecer a facilidade com que nos deixamos corromper quando, tão frágeis, abandonamos o ventre materno e nascemos para toda uma realidade colossal de ideias, ideais e ideologias já concebidas e instaladas, que inclusivamente contaminaram os nossos educadores mais imediatos, e os deles, com os seus secularmente pesados e arreigados alicerces e legados de cariz melindroso, bilioso, covarde, egocêntrico. Está-nos inscrita no espírito toda essa herança indelével, como um vinco numa folha de papel, que agora, com grande dificuldade e demora, os mais sábios têm de aprender a contornar.

Se a vida, tal como proponho, tem os seus alicerces ou o seu princípio na morte, ao ponto de a carne parecer seguir no encalço de um chamamento contínuo até à devida consumação, não é por esta ser uma vida que só serve de passagem sacrificial, qual via dolorosa, de molde a atingir o «verdadeiro estágio» ― esse pós-vida qualquer que só a custo de uma grande fraqueza por um lado e presunção por outro se fez por enraizar até às profundas da psique humana. A crença é um erro porque não sabe mas julga saber, imaginando e acreditando no que imagina. É uma sub-espécie da covardia. Só a imaginação assumida, isto é, artística e racional, não pode pecar aqui, porque em boa verdade, se visto assim, o contínuo memento do imperativo da morte que tentamos retardar, traz consigo um desejo supremo de vida, o qual apenas precisa de ser reorientado. A criação artística, parece-me, tem aqui o seu nascimento e ganha aqui a sua força. É a resposta mais salubre ao aspecto da morte: a alternativa à imortalidade que, na modernidade, Deus já não nos pode garantir. Se tal como o cavaleiro de Bergman queremos perdurar, façamo-lo com o brio e a coragem que nos compete. Aquilo a que chamamos de energia vital, espírito ou actividade psíquica, é quem grita pela vida, para lá do corpo que procede indiferente em direcção ao seu destino. Essa energia é potencial criação, que o artista concretiza. É vontade de realização: uma ordem da natureza. Concretizar esse grito, através da nossa arte, é mais do que dar-nos o que fazer ― é recriar-nos, é cumprir-nos no que somos. O simples espectador/leitor tira partido disso, identifica-se. A imaginação é esse grito enérgico do espírito que quer viver, tanto quanto possível, face a uma vida finita; um espírito que se quer ver completo no final. A arte deve ser assumpção total e o veículo maior desse desejo; deve servir, em vez de mero depósito de maleitas pessoais, para uma re-ligação com a Natureza, para uma compreensão unitiva dessa Mãe elementar e primordial. Mas deve, inclusive e sobretudo, tornar-se mais relevante do que o próprio desejo de imortalidade. Há que assumi-la como o atributo humano por excelência, aqui, na Terra. Uma arte projectiva, necessariamente, sim; mas ciente; cientemente terrestre; isto é, que parta de nós para fora; que não venha enganadamente de cima, qual divina influência que nos rouba a importância. Que tenha portanto os pés assentes na terra. Que saiba o que quer. Que irradie confiança.

O nada precede, portanto, todo o nascimento. É a primeira parturiente; a grande vagina, de onde tudo despoleta e se origina e se lança depois para o seu sentido: ser. A Existência comporta em si duas vontades-base, a vontade de viver e a de morrer, tidas culturalmente por dicotómicas, mas que de uma perspectiva universal, olhando pelo olho do Cosmos, nos pode apenas surgir à consciência (esse olho do Cosmos) como unidas por relação. A própria vontade de suicídio, consumada ou não, acaso manifestará mais do que uma vontade de viver que foi de alguma forma constrangida?... A vontade de viver, residente nesse espírito criador, conquistador de si, aventureiro, cuja imaginação, por si só, contagia já o corpo com saúde e força, por reacção instintiva à consciência desse futuro de que um dia tudo terá um fim (pelo menos tal como o conhecemos), adquire, nestes moldes, sentido próprio: a vida torna-se ela mesma, aquém já das sombras que a relegam para um Além qualquer, inalcançável, febril.

Esta visão tentativamente afirmativa de que a morte promove a vida, pode socorrer-se da seguinte metáfora: Alguma vez alguma árvore de fruto (pelo menos saudável), desde o tempo em que era rebento até ao tempo em que tomba e se deteriora e torna à terra, se perdeu do seu sentido natural, isto é, da função de dar frutos? Terá alguma vez deixado de crescer e de dar frutos só porque um dia viria a morrer? Sinto-me antes tentado a asseverar que cresceu e deu frutos precisamente porque um dia viria a morrer. E se criou, se deu frutos, aproveitou o seu tempo e cumpriu o sentido da sua vida. Só a árvore doente o não poderá.

Mas, claro, mesmo o ateu moderno padece, de alguma forma, de uma concepção imprópria da vida. O indivíduo moderno vive ainda na ressaca da desilusão das velhas promessas salvíficas, que o puseram defronte da responsabilidade própria de que teria de ser ele a salvar-se, recriando-se, reelaborando uma concepção do Universo, tendo como única fonte o passado longínquo, pré-cristão. O cenário social circundante não ajuda. A classe política, estatal e mercantil, essa inoculadora da alienação, despolitiza as consciências, o que resulta exactamente naquilo que a religião, ao nulificar o existente, inflige aos crentes. São obstáculos difíceis de ultrapassar e o intelecto humano, para mais, é preguiçoso. Mais ainda quando os velhos padrões, tanto políticos como religiosos, fazem por persistir, promovendo o niilismo. Nos dias que correm, isto é, do ponto de vista de uma crítica da alienação social, é caso para dizer: quanto mais me afasto da realidade, mais real me torno.

O sentido primordial da vida, o da elementaridade cósmica, segundo uma cosmovisão pagã, isto é, natural, pode ter-se perdido no tempo, mas verifica-se agora um crescendo cada vez mais significativo da busca por uma espiritualidade que quer trazer-nos de volta a nós e de volta à casa cósmica que, embora desapercebidos, habitamos e de que fazemos parte. A velha preocupação de uma continuidade pós-morte e de uma Entidade que a presida, está cada vez mais a passar para segundo plano, até que de todo nos desliguemos disso enquanto preocupação, logo que, por via das gerações vindouras, o espírito humano vá sendo depurado dos resíduos dessa matéria falaciosa que nele se foi depositando. A vontade de viver, nesta e não noutra vida, deseja impor-se, e com notório incremento. Um novo paradigma de vida espiritual tem já vindo a formar-se um pouco por todo o Mundo, se bem que de uma forma ainda muito incipiente. Mas é aquele que, mais amigo da liberdade, isento já de dívidas para com o divino, vai buscar a sua substância à natureza etérea das artes e à Natureza em si, a do planeta e do Cosmos, com o qual se identifica. O conceito futuro de religião caminha para a redefinição da relação que o indivíduo tem com o Mundo e com a sua extensão, o Universo. Talvez a Vida real volte a ganhar, embora claramente noutros moldes, o enfoque que durante séculos, com a instituição do cristianismo (e agora do capitalismo), perdeu. Nós, que vivemos hoje, podemos pelo menos fazer parte dessa mudança com o que cada um tem de melhor e, essencialmente, de mais drástico.

Em suma: que a morte é parte da vida e vice-versa, que interdependem, que um ao outro se seguem com a devida ordem e entreajuda, é a tese defendida neste texto. Os povos pagãos conheciam bem esta visão, até ter-se dado a clivagem ideológica e civilizacional que veio trazer ao pensamento moderno a ruptura que resultou na profunda separação entre o Homem e a Natureza: a diabolização desta por parte da doutrina cristã e a expansão das urbes por meio da Indústria. Mas talvez a própria História, tal como a Natureza, seja de facto um processo constante de retorno e tudo de facto assim se processe, ciclicamente, com toda a força da renovação, que incansavelmente vai substituindo os elementos já gastos e supérfluos da sempiterna Existência.


Berlim,
Janeiro de 2013

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