Sunday 18 August 2013

Do Sentido de Aventura: o Novo Sátiro








Antes quero ser um sátiro do que um santo.

(F. Nietzsche, Ecce Homo)



A epígrafe com que ilustro este texto pretende enunciar algo profundo mas, infelizmente, apenas latente, recalcado nos confins do Ser; o elemento mais forte e, todavia, mais relegado dele, nos dias que correm. Falo do sentido de aventura enquanto fuga ao labirinto social e respectivo espectáculo acabrunhante, depauperante, e enquanto desejo de libertação. O sátiro gosta de dançar e de vaguear livremente. Sabe que a vida não tem só um prisma, que é antes multifária. E como não deseja mal ao seu semelhante nem ao seu dissemelhante, não lhes vende balelas nem lhes expõe a sua segregação corrosiva. Trabalha antes para elevar os espíritos, mostrando-lhes a possibilidade e a coragem de Ser. Prefere, ao rebanho, exércitos de guerreiros e belatrizes, indivíduos que lutam por si mesmos, que lutam por superar-se, combatendo a sua condição e auferindo assim um pouco mais de desenvoltura e liberdade de espírito neste mundo de enleios. Eis que, cada vez mais, um novo sátiro deseja surgir do olvido para nos vir resgatar ao sedentarismo físico e espiritual que nos domina, que nos amesquinha, que nos tolda, que nos separa da vida e da vontade. Uma vez desperto, convidar-nos-á para dançar: prelúdio de um renascer.


Aventura é movimento. Misto de expectativa, receio, entusiasmo. Pode dar-se tanto no terreno como simplesmente em espaço anímico. E são vários os meios de encetar uma aventura. Esta abordagem seguirá uma direcção polissémica, que me proponho explorar minimamente. É uma palavra e um conceito que me são caros. Como todos os seres em cujo peito bule vida, e cuja mente o sabe porque lho dizem as veias, o meu sentido de aventura é, como sempre foi, uma constante (mesmo que na prática não se reflicta tanto como gostaria; mas ainda há vida pela frente...). Prefiro sempre o lugar que ainda não conheço, não porque o lugar onde estou seja mau mas porque, segundo a minha natureza, tende a esgotar-se. A pessoa, enquanto lugar, também entra aqui. É então necessário recorrer à aventura para que nos salve de nos esgotarmos com o lugar. É habitual, por exemplo, termos uma casa onde permanecemos grande parte do ano como que estacionados. É habitual praticarmos o mesmo caminho ano após ano, que já nada traz de novo. É habitual vermos as mesmas caras, vítimas igualmente de uma displicente rotina. É desta noção de rotina, cujo primogénito é o Tédio, que advém o sentido de aventura. O tédio não é mais do que a manifestação de uma vontade enclausurada que se quer libertar. Todos desejamos ser mais do que rabos sentados.

O mais imediato recurso aventureiro - de fuga, portanto, ao esgotamento, à inanidade que nos rodeia - será, talvez, a literatura e o cinema. Proporcionam - tal como também a música, o teatro, a fotografia ou qualquer outra arte - um tipo de aventura que nos é dada a experimentar pelos sentidos. É uma aventura interior, que se processa dentro de nós, emocional e intelectualmente, e por isso estática. Ainda assim, uma aventura. Parece-me certo que tanto as artes como o entretenimento (este mais ainda) sejam os recursos mais à mão da maioria da população mundial, dado que a experiência de uma aventura física, no sentido em que temos de nos deslocar, sendo esse deslocamento a aventura, está, provavelmente pelas mesmas razões que a mim, impossibilitada à maioria. Pelo menos da forma desejada. Os anos vão passando e nós, no fundo, vamos apenas coleccionando pequenas aventuras anímicas e, para a classe média a que pertenço, uma viagem por ano, a qual, ainda assim, não deixa de ser turismo. O simples facto de o lazer se encontrar reduzido a «sector», o que é determinado por um outro - o do trabalho -, é esclarecedor. O turismo é o algoz da aventura, o pastor do rebanho de veraneantes. Aquilo a que se chama de «férias marcadas», isto é, «seguras», substituiu de vez o lugar da aventura espontânea, periclitante, e transformou o ser humano num servo da chamada «boa vida». As férias vêm assim justificar a institucionalização da escravidão do trabalho e a redução do Ser à camada hierárquica em que o enfiaram e onde o manipulam.

Pegando num dos exemplos de aventura anímica: a literatura. Esta, quanto a mim, comporta em si uma capacidade de transporte singular, não descurando as restantes artes. A duração da leitura de um livro consiste na assimilação de uma realidade construída à base de ideias encadeadas que dentro da nossa cabeça, no decorrer da leitura, adquirem sentido íntimo, porque detentores de signos metafóricos para os quais encontramos correspondentes na nossa realidade e com os quais nos identificamos. Se a adjectivo de singular, é enquanto leitor que o afirmo mas também enquanto escritor. Desde que escrevo, desde que desenvolvo histórias literárias, desde que sigo nesta aventura que é criar através da escrita, que consigo dar vazão de uma forma melhor, para mim, ao sentimento de tédio. Este é o meu caso. O mesmo acontecerá com outros, noutras áreas. O fulcro da vida hodierna consiste inevitavelmente - para o espírito inconstante, inadaptado, desejoso de liberdade e transformação espiritual e criativa - na fuga, na revolta e subsequente atenuação do taedium vitae. O tédio é, provavelmente, uma tendência congénita, mas que um sistema económico mal estruturado e doloso sobremaneira agrava, podendo facilmente fomentá-lo até ao desespero se, por iniciativa, esse mesmo sistema nulificador não for combatido pelo potencial criativo do indivíduo, só ou em conjunto, de forma a poder enriquecer-se conforme o seu gosto íntimo e sentido vital. Ao ignorarmos este recurso incorremos no risco de a Vida perder pelo caminho a sua substância, o seu sentido. Esta é uma questão cada vez mais pertinente porque a realidade política está organizada de uma forma que contribui exclusivamente para o despoletar e incremento desse tédio, produzindo com isso derrotistas, retardatários, desistentes, decadentistas, más índoles e autómatos inveterados. É muito fácil fazer de um cão aquilo que queremos dele, como nos mostrou Pavlov. Um cão é um animal e como ele, corruptível, somos todos. É preciso criar defesas: lendo, observando, reflectindo, amando, criando - resistindo.

A mais pequena unidade representativa do tema da aventura é o próprio pensamento, tornado, claro está, imaginação ou filosofia. São estas duas categorias, aliás, a engrenagem de toda a aventura. O pensamento, a que uma conjuntura emotiva dá origem, é, enquanto fautor da ideia, o primeiro passo da aventura. A imaginação, que é pensamento elaborado de ideias, é o seu seguimento. E aonde leva a imaginação enquanto aventura? A mil e um lugares. Mas tomemos o seguinte exemplo: Corto Maltese, que considero o protótipo do verdadeiro aventureiro. Um solipso anarco-romântico, para o qual as leis dos homens não foram feitas. Antes prefere procurar tesouros; tesouros que a ressequida sociedade materialista não possui. Corto vagueia pelo mundo por opção, por aventura, e, pelo caminho, decerto que nunca deparou com o tédio, e se deparou, não se há-de ter demorado senão enquanto o caminho parou. Na sua totalidade, o tédio só pode existir na rotina viciosa dos sedentários, esses segregadores de cinismo e inveja. «Mas o aventureiro», poderiam estes contra-argumentar, «ainda que não sinta tédio, sente o abandono constante do que deixa para trás. Só por isso busca mais aventura...» Então e o sedentário, aquele a quem edificar-se desinteressa, aquele que, para além do que a sociedade faz dele, nada alcança, não deixa a vida em local pior, isto é, no sítio de sempre, como que anestesiada, indolente e oca? Tão-pouco se aborrece já, de tão acomodado que está ao aborrecimento!

Todavia, a aventura enquanto libertação, espiritual pelo menos, não é possível sem a prerrogativa da filosofia. Só que esta é, principalmente hoje, um bicho de sete cabeças. O indivíduo, concluo, receia-se a si próprio. Mas a filosofia não é senão abnegação. Sequer a vejo como disciplina, a priori. A filosofia é, na sua essência, o princípio de libertação e é a própria libertação. E o que é a filosofia? É pensamento ágil, que procura sê-lo. Acaso não é o pensamento a propriedade mais própria do ser humano, o qual, todavia, na maioria dos casos, ainda assim o despreza, preferindo o acto bruto, a violência física, desafectuosa e afectada? Pensar, erigir consciência, é difícil. Mas essa dificuldade, se empreendida, salva de tudo, porque é ela mesma a sua própria superação. A filosofia, que não é senão pensamento desenvolto, ensina-nos a escapar ao erro. A filosofia é fuga e desvio: se lhe seguirmos na peugada, rapidamente aprenderemos a esquivar-nos às condições e imposições do sistema vigente, esse erro; se lhe seguirmos na peugada, rapidamente nos tornaremos aventureiros de nós mesmos, pois que rapidamente nos levará por desvios íntimos mais vivos e entusiasmantes, convidando-nos, posteriormente, a lançar pés ao caminho, à verdadeira aventura, como fazem os orbívagos. Tanto quanto possível, claro está. Mas a filosofia, ou se quisermos, a reflexão, cria e recria consoante é seu predicado. E liberta-se aquele que a faz sua. Dificilmente haverá aventura que valha àquele que não trate de levar a cabo, num registo minimamente dedicado, a sua auto-edificação. Há certamente uma procura a fazer nos livros e na arte detentores de um conhecimento das coisas que os seus vários autores proporcionaram. Sem esta preocupação, sem esta busca, poderemos vir a dar por nós, e pelo nosso potencial criativo (nem que seja sonhar), numa estagnação que nos assustará, e mais ainda por virmos a perceber o quão difícil será sair dela, mesmo que viajemos, que façamos desporto, que passeemos à beira-mar ou nele mergulhemos. O mau carácter desenvolver-se-á até na mais paradisíaca das ilhas, se aí existir um ser humano incauto. Da mesma forma pode o estudioso cair no mesmo erro. A ambição ao eruditismo só o fará acabar como os velhos tomos que lê - bafiento.

Apesar de fomentarem o sentido de aventura, tanto a literatura como o cinema, ou qualquer outro suporte de aventura estática, como os jogos de computador (estes abonando ainda mais para o que digo em seguida), são a forma menos saudável de o espírito se libertar dos seus enleios consuetudinários, precisamente por tais alternativas serem meros sucedâneos de libertação, subterfúgios, que, a partir de certo ponto, poderão tornar-se no contrário da sua boa intenção e fazer-nos procrastinar a vida em vez de vivê-la. Dadas as circunstâncias, i. e., o investimento vital reduzidíssimo das políticas nulificantes deste Mundo, compreende-se tais recursos. Por isso mesmo as artes deviam ser mais esse instrumento de combate pelo humano. Mas, de facto, uma aproximação mais verdadeira da libertação espiritual só pode atingir-se por meio da aventura praticada no terreno, na vida real, com riscos reais, onde nos tornamos um com a vida, onde a imaginação se coaduna com a realidade, ao passo que o espectáculo - tal como a Internacional Situacionista o elaborou - aliena e separa da vida. O cuidado de pormos em prática a aventura, qualquer que seja desde que genuína, ajudar-nos-á a salvar a pele daquilo em que nos estão a tornar: pedras autotélicas. Perante isto, a criação e a expressão artísticas só podem ser um bem. Aqueles que não desfrutam desse bem, do seu potencial criativo, não vão além das horas que gastam ao telefone ou na internet, dos copos que bebem ou das substâncias que inalam. E quando digo que a verdadeira aventura é no terreno, digo que o seu contrário é apenas podermos conhecer o mundo por via mediática, por aproximação sensível. E ainda assim julgamos conhecê-lo. O que existe é, pura e simplesmente, noções sincréticas, previamente orientadas por um mediatismo imediato e imperiosamente defeituoso. Na era da informação mediatizada, isto é, que parece o Real mas não é (a vivência directa da vida, não mediatizada, é que é o Real), em que o espectador julga estar a par e poder elaborar uma opinião justa, embora não seja muito mais do que mero receptor, apto apenas a inferir, e em muitos casos sem quaisquer filtros, vale-se mais pelo que se cala do que pelo que se diz (furtando aqui a Camus, em O Estrangeiro).

O outro, o nosso semelhante, é também um facultador de aventura. Acaso não é a pessoa desconhecida, amigo ou amante, terreno explorável? Uma conversa tida com alguém, plena de consenso, divergência ou mera diversão também pode trazer-nos muito daquilo que nos dá a aventura levada a cabo num país ou numa terra diferentes. Isto faz da amizade, ou companheirismo, um excelente recurso aventureiro, que nos permite escapar tanto de nós como daquilo que nos rodeia ou, pelo menos, aliviar o ónus do mal circundante. Mas há ainda um receio que persiste de nos aventurarmos no outro, no desconhecido. Vivemos acomodados ao nosso corpo e ego, a uma imobilidade espiritual crescente, egoísta e, apesar do vazio que lavra por esses espíritos fora, alimenta-se a feno um iludido egotismo. Mas fazemos questão de viver em comunidade... Ao mesmo tempo que segregamos soturnidade, vamos afogando nos nossos maus humores a jovialidade e abnegação do sátiro que potencialmente somos. Mas claro que, deixo a ressalva, em não havendo empatia natural pelo outro, por determinado lugar desconhecido, não haverá razão para encetar tal expedição. É procurar noutro lugar. Pois que nem todo o lugar - humano, artístico ou geográfico - tem de ser cativante. Há, ainda assim, espaço para todos.

Se se fala do outro como meio para a aventura, ou para um tipo específico de aventura, isto é, a partilha, também o sexo tem aqui relevância. Talvez até mesmo, no que toca ao relacionamento humano, seja uma das mais marcante experiências ou formas de aventura que podemos buscar no nosso semelhante, desta vez no seu corpo, através do qual se exploram experiências erógenas, e todo o nosso ser parece exteriorizar-se justamente com o orgasmo, essa fuga, por excelência, de nós próprios. Trata-se igualmente da forma mais eficaz de libertação por comunhão, a par de uma necessidade fisiológica. E talvez essa necessidade, uma vez que inata, justifique a natureza aventureira do ser humano. Se aceitarmos o sexo enquanto forma de aventura, aceitamos o sentido de aventura enquanto natureza inerente ao ser humano.

O sentido de aventura, no plano hodierno, representa acima de tudo, especialmente para os espíritos mais revéis, a necessidade de fuga. A fuga à prisão entediante e asfixiante da condição de cidadão. O Estado, enquanto organismo de um egoísmo colectivístico, remete-nos constantemente para o sonho estático, para o espectáculo, para o lugar de meros espectadores sentados, enquanto nos exaure com trabalho que, em vez de dignificar, como apregoam, traz senão ao de cima, na maioria dos casos, os nossos mais vis defeitos de carácter, como o sentido de competitividade nociva, inimizante, que nos aliena da nossa própria formação enquanto indivíduos dignos da sua humanidade, consigo e com os outros, abandonando-nos à falta de vontade própria e de autonomia. O álcool, as drogas, o entertenimento e as artes, por mais que doa, são elementos, por excelência, de fuga às ordens a que estamos obrigados; são as unidades de aventura mais ao alcance, mas também as mais esgotáveis: urge sempre voltar a elas. Corremos cada vez mais o risco de já não sermos vidas mas projectos governamentais. A maioria das pessoas não pratica algo de que gosta; trabalha antes para os outros, não para si. Só quem também trabalha para si se aproxima mais dessa noção de dignidade ou satisfação pessoal perdida. São-nos impostas condições de sobrevivência com ridículas promessas de regalias caso trabalhemos, nos esforcemos e nos portemos bem. É a velha dependência, astutamente forjada, da qual se podem estabelecer os seguintes paralelismos: filho/Pai, crente/Deus, cidadão/Estado. Mas reservam-nos contudo o direito a férias alienantes!, essas fabricantes de turistas feitos máquinas registadoras que para mais compactam a experiência tida nas fotografias que tiram, julgando ainda trazerem algo para contar do pacote «aventureiro» que adquiriram em troca de meses de servidão mal paga. Posto isto, até mesmo nas férias estamos a trabalhar para o Estado... Mas dado que nas férias se trabalha também para o bronze, a nocividade do contrato social a que estamos obrigados torna-se muito menos perceptível, logo que bronzeamos o ar servil com que andámos o ano inteiro... É, quanto a mim, tudo uma grande sensaboria e hipocrisia. Também eu amo o Sol e a praia! Mas perceba quem puder... As velhas receitas precisam de desaparecer. As instituições precisam de ir abaixo, de morrer, e o ser humano precisa de ressuscitar, porque está morto ou moribundo, apesar de haver quem se vá esforçando por estar um pouco melhor, isto é, à margem, nem que seja dentro deles mesmos, com a sua arte e pensamento libertadores. Esses, espero que não desistam da sua contínua auto-edificação. Dessas cinzas renasceriam os indivíduos reconstrutores, unidos na diferença, sem as imposições, sem os jogos de poder: teríamos o pai a aprender com o filho, Deus a habitar o homem, um indivíduo, tanto quanto possível, auto-suficiente, mas que aceitasse e também pudesse contar com o sorriso do seu vizinho, ou pelo menos que não tivesse de levar com a sua índole asnal! Cada um no seu ofício e cada ofício uma achega à multidisciplinaridade, se assim se achasse, a um tempo complementar e independente. Enquanto o Estado tiver que ver com cada um, não existirá autonomia. Por ora resta-nos, como aconselha Thoreau, «declarar guerra ao Estado, [à nossa] maneira, continuando embora a servir-[nos] dele e a extrair dele todas as vantagens possíveis.» (A Desobidiência Civil). Um pouco à imagem do antigo povo Lusitano que, para resistir aos invasores - a poderosa Roma -, se servia das armas dos que dentre os inimigos pereciam em batalha, de forma a resistir-lhes melhor. Hoje - e sempre que necessário - a melhor forma de viver é sem dúvida a da resistência. Desta resistência renascerá, em cada um, o Novo Sátiro, esse novo estado de espírito e consciência, autêntico, verdadeiro para si mesmo e para os outros. Só então tornaremos à Vida. Só então estaremos finalmente aptos a viver. 

A resistência à realidade vigente - i. e., política e espectacular - que nos pretende nulificar enquanto indivíduos autónomos e criativos, de forma a inserir-nos num projecto estéril, desumano, interesseiro, é talvez das mais árduas aventuras do dia-a-dia. Uma vez que em todas as aventuras existe risco, há que estar à altura fortalecendo o espírito pelo caminho. «Ética», disse Deleuze, tal como o li na estação de metro do Parque, em Lisboa, «é estar à altura daquilo que nos acontece.» Mas é também estar à altura daquilo que somos. Se somos indivíduos erectos, se temos um compromisso para com esse estádio não só físico mas espiritual e intelectual, a felicidade está de facto em resistir, no cansaço da luta e do caminho e, essencialmente, nos desvios à realidade vigente que nos pretende institucionalizar (leia-se «paralisar») os movimentos. Estes desvios devem ser profundos, conscientes, genuínos. Podemos começar por nós mesmos, passando de seguida ao nosso vizinho, se virmos que é caso para isso. Não é dando palmadinhas nas costas dos outros, nem lhes deixando comida à porta da toca, que eles sairão de lá: mas ajudando-os a sair. Nada é visível no escuro da compaixão anormal. Ao aconchegante abraço fraternal, afectivo, reveze-se a verdade de uma visão depurada, honesta, real e tão drástica quanto persuasiva. De nada nos serve a amizade se esta nos deixar só mentir no aconchego dos seus braços. Não só de protecção precisamos mas de incitação, para que o despertar seja imenso, as acções genuínas, autónomas, belas, magníficas. E que não precisem da anulação alheia para se emanciparem! A viabilização do Amor só se tornará viável consoante a exposição do humano for a do seu potencial criador, enquanto espírito e pessoa autónomos. A Arte é cada vez mais precisa. Uma arte por um lado expressiva e edificante por outro. Criar é a verdadeira natureza humana. Há que persegui-la, incorporá-la, fazê-la viver de facto. E pô-la ao serviço do humano.

No comments:

Post a Comment