Sunday 18 August 2013

As Trelas da Criação


«E escutá-los-emos [aos criadores] favoravelmente, porquanto só teremos vantagem, se se vir que ela [a criação] é não só agradável, como também útil.»
Platão, A República, Livro X, Gulbenkian (Trad.: Maria Helena da Rocha Pereira)

The Lords appease us with images. They give us books, concerts, galleries, shows, cinemas. Especially the cinemas. Through art they confuse us and blind us to our enslavement. Art adorns our prison walls, keeps us silent and diverted and indifferent.
James Douglas Morrison, The Lords

Nos poetas, sempre me desagradou a forma emotivamente empinada e entoada com que recitam os poemas: sempre me pareceu dar-se mais importância ao elevar do nariz, do que ao que o poema diz. Talvez porque não diga muito...

A criação (que aqui pretende incluir literatura e arte) dos nossos dias faz ainda amiúde evocar a frase que Isidore Ducasse dirige aos escritores, se lhes opondo: «Se sois infelizes, não é preciso dizê-lo ao leitor. Guardai-o para vós». Podemos encontrá-la nas suas Poesias; e esta também: «o homem não deve criar a infelicidade nos seus livros. É querer, a todo o custo, considerar apenas um dos lados das coisas. Ah, que maníacos uivadores vós sois!» A criação artística em geral - em que por exemplo o cinema e a música são também especialistas e dos sectores artísticos mais influentes -, segundo a forma como é adoptada pelos respectivos criadores, redunda no seu mais pleno contrário: a moda decadentista,  uni-prismática, de publicitar os próprios males, ou a ideia de que a Vida é má e infeliz através de um mero caso,  de uma mera perspectiva. A vaidade da decadência tão-pouco destrói para voltar a criar: fica-se pelo definhamento, pela tendência puramente auto-flagelativa, barrando a margem de manobra à potencialidade da perspectiva e acabando no fetiche da queixa. Uma masturbação que executam com o órgão errado...  Parece ser essa a única resposta que têm a dar ao estado das coisas, ao regime social estagnante em que vivemos - isso, sim, é mau! - que nos quer plácidos e domados e infelizes, e que, além do mais, é totalmente indiferente a tais amuos artísticos. Vejo-nos chegados a um ponto em que a dor, essa condição tão natural ao ser humano, que nos incita à expressão artística de forma a projectá-la para algo maior, como uma revelação, parece descer ao patamar do exibicionismo. É preciso uma certa capacidade de auto-educação para não cair nos mesmo buracos que os outros, que se limitam aos estímulos do mimetismo e da vaidade.

Com o cristianismo fez-se da mortificação atributo do ser vivente. Em vez de se caminhar, rasteja-se. Vivemos uma humanidade de crucificados e lamentosos, de gente perdida, submetidos a uma herança colectiva tendencialmente desairosa, que assumimos há demasiados séculos, e tudo por termos aprendido a crer que a possibilidade nunca está aqui mas além. É uma crença entrevada. Uma herança de que, hoje camuflada por uma era pretensamente moderna, não abdicamos contudo: não conseguimos, não nos concedemos ainda a liberdade de não imitar. O mimetismo, enquanto fenómeno de padronização comportamental, opera por dever e é estulto. Prometeu roubou o fogo em vão; a queda de Lúcifer é utilizada como mera metáfora de perdição, quando devia ser vista como a única queda admissível... A queda de Lúcifer é a libertação de Lúcifer: não caiu, atirou-se, para se livrar da orientação opressiva do grupo e do líder. Prometeu trouxe-nos o fogo dos deuses, para que os humanos vivessem. Mas tê-lo-emos aceite?

Não é possível falar-se de uma humanidade linearmente experiente porque a humanidade encontra-se num estado de juventude constante, como se estivesse sempre a rejuvenescer (e aqui a acepção é negativa). Há uma evolução, claro. A humanidade clássica é diferente da moderna. Liga-as um legado histórico, claramente. E se há uma evolução, há uma passagem. Só que essa passagem, parece-me, é do tipo estafetas... Ora, o legado histórico, por si só, nunca poderá ser suficiente numa humanidade que se interrompe constantemente - morre o pai, continua o filho, que terá de aprender tudo outra vez - e que desde sempre, para mais, foi mal governada. A humanidade é, em primeiro lugar, fragmentária, e por isso está submetida a uma aprendizagem que se interrompe, como a própria vida, destinada a recomeçar noutro lado, na tábua rasa de outro corpo e outra mente. É algo cíclico, quase vicioso: há uma paragem e um voltar a arrancar, e um retorno a essa dinâmica. Continuamente. Daqui podemos inferir que a humanidade, num sentido profundo, nunca aprende de facto. Pelo menos de uma forma eficaz, consecutiva, triunfante. O processo de aprendizagem a que está sujeita é reincidente: fá-la sempre cometer, século após século, geração após geração, aquilo que considera erros. Não existiu, até agora, uma passagem a um estágio diferente, realmente diferente do anterior; e se existe hoje um conceito de humanidade, tal só foi conseguido através da imposição de leis. E se há uma tentativa de superação desses erros, deve-se, talvez, aos  seus mais preocupados agentes: os que cultivam a Arte e o Pensamento. Só esses delineiam o devir. Mas onde estão eles hoje? Pior, é que os agentes patogénicos, como o Governo e suas Instituições, são o verdadeiro sinónimo de Estado, que é de base empresarial, isto é, parasitária, o que, inevitavelmente, acaba por influenciar todos os elementos constituintes de uma sociedade. Os Estados, que são organismos estatistas, promovem a estupidez, a banalidade e a subserviência. Não lhes interessa o indivíduo e seu colectivo crescimento intelectual, cultural, humano, mas unicamente o crescimento económico, infra-estrutural e tecnológico do próprio organismo estatal, como se independente dos seres que o promovem e os seres que o promovem fossem meros animais que, cegos, trabalhassem para o organismo. E pelo andar das coisas, são-no. Há até quem goste! E pouco mais, a menos que nos despachemos (e chegaremos a tempo?), se poderá fazer quanto a consciencializar e erigir de facto uma Humanidade, essa noção ainda tão abstracta, que serve senão a demagogia, pois que o ser humano, sendo limitado de tempo de vida, carente de atenções e sofredor de profissão, é de igual modo limitado em si, de vistas curtas: nunca concretizará o que aprendeu porque a única forma de o fazer é passando o conhecimento a alguém que está ainda a crescer, e que tem de aprender tudo do princípio, e, na maioria dos casos, aprender o mesmo que aquele que o ensina aprendeu, cometendo, por isso, todos os erros de uma vida (uma forma de aprender, diz-se e às vezes até resulta, mas que, à escala aqui tratada, é uma reincidência). A Humanidade é, paralelamente, constituída por ilhas de uma subjectividade feroz e índole aniquiladora, natureza que um sistema monetário vazio só ajuda a fomentar. E os agentes da alienação que funcionam em concordância com o Estabelecido, como a comunicação social, o entretenimento televisivo e cinematográfico, a má literatura, as instituições escolares/académicas, a própria família, a própria cultura, a religião católica, não olham senão à possibilidade competitiva de lucro, para obtenção de distinção e poder. É como dizer que a esterilidade é suficiente: a ilusão económica de que o dinheiro valoriza é o bastante para se pensar que se vive.

A Igreja é das mais descaradas e sardónicas das instituições: a empresa do Bem. A grande responsável por criar anhos por encomenda dos Estados. Até que os Estados, tornando-se suficientemente poderosos para já não temerem a Deus, foram dispensando a Igreja. Mas os cordeiros já tinham, contudo, sido moldados, molde esse que nos afecta ainda. Agora a Igreja continua servindo o Estado, e o Estado vai deixando-a estar. A aniquilação do valor humano, per capita, nasceu deste interesse mútuo. Ao indivíduo sempre lhe foi dito: «Não serves para nada senão colectivamente e fazendo pela "Entidade" (Estado, Deus, qualquer coisa desde que não exista em concreto...) que te é superior.» As instituições são, portanto, a mordaça do espírito humano. O nosso legado, são trelas. A nossa vida, um morbo. Não há uma comunidade de indivíduos, mas de sujeitados.

Hoje, essa herança espiritual de lesa-humanidade revela-se por sucedâneos, elementos com nome de código que não já o religioso, antes transversais na imagem mas com a mesma base, que continuamos regando aqui e ali sem sequer nos apercebermos: os penosos de hoje não sabem porque penam, acham simplesmente que têm de ser assim. O mal instalou-se neles porque está por todo o lado, disfarçado de Bem. A alternativa não é melhor ou menos alienada: substituírem o Deus pelo Estupor e, em vez de irem à missa, não irem a lado nenhum... Penam por aí, à medida que lhes vão sugando a vida. E os criadores, que deviam dar resposta a isto, acabam por abusar do seu próprio potencial criativo que, no fundo, não mata ou mitiga nenhum tipo de sede, e tudo em nome de uma exposição viciosa e desejosa de aplausos emotivos. Aposta-se nas veleidades de um estilo próprio, pretensamente cativante, que muitas vezes o é de facto, mas que serve apenas a vaidade própria: é inútil, não exalta os espíritos, antes os tolda. Por isso a criação, esse instrumento que devia ser uma «arma» (a única, aliás), que tem todo o potencial para o ser, que devia servir de ameaça constante à estagnação dos seres, se me revela estéril na grande maioria dos casos. E quanto mais para cá no tempo, pior. Tenho ouvido criadores sugerir, mesmo que apenas tacitamente, ser por reconhecimento e compreensão do outro: um «somos iguais!» caquéctico e limitador, em cujo invólucro se encontram em pateta comunhão... Mas por que se desejam tanto mal e ainda assim se abraçam? Não compreendo! A ausência de uma análise centrífuga e nula autognose, distraídos antes por um culto da decadência e da mortificação fetichistas, permite-lhes apenas que se deixem como que submersos, de mãos bem dadas, no lago estagnado das suas próprias lágrimas comuns, para onde ainda convidam os outros, de forma a se sustentarem reciprocamente na permanência desse seu inveterado mal-estar... É a nova religião!, cujo deus é a própria vaidade da auto-decomposição, do queixume, do desprezo pela vida, do deixa andar.

«Eu sou uma jovem fera pagã, em busca das melhores mentes do meu tempo.» Esta frase costumava ecoar-me na mente como um uivo... Eu era mais jovem e ainda cria, mais do que hoje, na Possibilidade. Precisava apenas de saber que eles existiam, esses jovens cheios de vida, espírito e vontade própria (que é como quem diz atrevimento), que não se deixavam lesar completamente pelo mal circundante e que por isso me animariam. Ainda vislumbrei tal luz em alguns, que a custo se iam e vão ainda esforçando por compreender e escapar. Espero vir a conhecer mais. Tenho conhecido uns poucos. Procuro, como procurava, apenas uma coisa nas pessoas - talvez aquilo que mais lhes foge: a vida em si. É a minha forma de me manter de harmonia com aquilo em que acredito: estar vivo em mim, à imagem do poder enérgico do Sol e da maviosa Lua - estão ali e pronto, firmes no dever para consigo. A sua condição é o brilho. E olhai, como são úteis outrossim aos outros! As ilusões do ser humano, as projecções e as introjecções a que se prende, não o deixam realizar-se enquanto ser vital, único, bloqueiam-lhe antes o espírito. Sentados na cadeira do próprio mal-estar, fingem que não é nada assim, habituados e até orgulhosos, pois há quem goste deles e nisso se refugiam. Inseridos como estão nas malhas alheias, não passam de uma armadilha dentro da Armadilha. Uma Armadilha que tem sido senão continuada. Da mesma maneira que o sentido de aventura vai declinando para o visionamento virtual, criando desventurosos ineptos, toda a vida se vê abocanhada pelo alienante monstro hodierno.

Em termos gerais, i. e., em todos os sectores da sociedade, isto só pode traduzir-se em auto-deterioração. Como à sua volta tudo é «assim», e o assimilam, ninguém o tenta superar. O Estabelecido tem-nos pelos colarinhos. São seus súbditos. À maioria fá-los, inclusive, odiarem-se uns aos outros, numa competição ridícula e humana: o ser humano não é mais do que um competidor, é ainda mero animal, que vive tentando superar o outro, quando a tarefa devia ser superar-se a si mesmo.

É um facto bem conhecido o quão mal correm os tempos. Por isso mesmo cada indivíduo, em vez de se deixar infectar, devia fazer-lhes frente espiritualmente e através da força, se necessário, de forma a não deixar o corpo e o espírito prostrarem-se diante do estado das coisas, contrariando o que a televisão nos ensina. Para isso, seriam precisos agentes (as próprias pessoas) que ajudassem, por si ou em conjunto, a esse movimento, a essa acção. É necessário desencadear reacções, por todo o lado, de todos os lados, coisas que os espíritos sedentários e reaccionários não tolerem, de tão atados que estão às suas vidas sentadas. Já que os líderes políticos de nada servem, os outros, os que deviam encarnar a pele de líderes espirituais - como os criadores de todos os géneros artísticos - faziam bem se optassem por outra postura nesta Terra desolada. O que há a transmitir aos seus semelhantes é empresa de grande responsabilidade, já que as escolas deste mundo, e outros agentes de transmissão de conhecimento, pouco ou nada transmitem. A arte é precisa enquanto resposta e ataque, não enquanto simples auto-exposição vaidosa.

A tarefa do ser humano na Terra: suplantar o macaquinho mimético que ele é, quando imita sem reflectir. Combater a estultícia e a redoma do ego egotista. Contrariar o Estabelecido. Enquanto a criação for estéril reprodução ecóica, nunca poderá ser aquilo a que se propõe - criar! - nem quem a cria um criador, se entendermos por «criação» a «auto-superação». Para isso, é necessário primeiro a desconstrução do que nos rodeia e a nossa própria, para depois, peça a peça, empreender nova construção. Nunca para chegar a uma meta: isso é só mais outra miragem! Nada na vida é finalista, nem mesmo a morte, pois que mesmo esta nos reintroduzirá no mundo e no cosmos como parte integrante (e talvez até mais funcional, em muitos casos, do que quando vivos) por meio da decomposição física. Nem então teremos atingido um fim, apenas um novo começo, uma forma diferente de vida.

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